Tucupi preto? Preto que nem telefone? Sim! Esse post não se refere ao apreciadíssimo tucupi amarelo não. Fala da sua versão concentrada, preto que nem telefone! Para os mais jovens - antigamente os telefones, bem antes dos celulares, eram aparelhos coletivos, de cor preta, preto bem graúdo. O adjetivo "graúdo" também caracteriza bem o sabor potente e concentrado do tucupi preto, filho da terra, um saboroso tempero de origem indígena. Aqui na região é vendido sob a marca "Manubé" e se encontra por exemplo no Mingote.
Tucupi, cheio de umami
Ao provar pela primeira vez um tucupi preto, senti uma sensação estranhamente familiar! O sabor dele me lembrava demais do gosto de um molho industrializado da minha terra tão distante! Tempero pronto muito usado, quase tão indispensável que nem o sal, que dá aquele toque final a muitas comidas. Pesquisando fui entendendo. Umami! O que me foi familiar na língua, é o tal de umami. De origem japonesa, a palavra umami pode ser traduzida como delicioso ou saboroso ou até com “essência da delícia”. Apontado como o “quinto” gosto básico que o paladar humano consegue distinguir, só foi descrito recentemente. No ano 2000 juntou-se aos já conhecidos gostos doce, amargo, azedo e salgado.
E para complicar mais um pouco - quem entende do assunto ressalta que o umami é um gosto e não um sabor! Para perceber o gosto de um alimento, precisamos só do paladar. Mas para perceber o seu sabor temos que envolver dois ou mais sentidos, por exemplo o paladar é o olfato. Já pensou o cupuaçu sem o seu perfume? E aqui entra o tucupi. Tucupi é cheio de umami. Tucupi preto, uma das muitas invenções puramente indígenas, derivado da mandioca, é uma concentração do tucupi, consequentemente concentra todo o seu umami! Alguns povos indígenas o usam, e aqui se fecha o ciclo, igual um tempero. Quem quer saber mais direto da fonte clique aqui:
https://o-boto.com/blog/tucupi-preto-o-shoyu-indigena-feito-de-mandioca#!#comments
Esse é o meu molho básico composto por tucupi preto, pimenta-de-cheiro, sal, suco de limão ou vinagre japonês e gengibre em lâminas finas. Quem gosta de agridoce que nem eu, acrescente uma laranja, suco e raspas da casca, e um pouco de açúcar mascavo ou mel nativo. A gosto e para combinar melhor, reduzo o mesmo sob fogo baixo ou engrossa com um pouco de goma ou fécula. Sirvo acompanhado de dados de tapioca.
Mão na massa - faça você mesmo
O sabor e a textura dos tucupis pretos diferem entre si, já que o produto é um tempero indígena completamente artesanal, obtido da redução de tucupi tradicional, amarelo. Mas vamos por partes. Aqui na Amazônia todo mundo aprecia e conhece tucupi. Uns como eu, gostam mais daquele bem ácido. Certas regiões apreciam mais tucupi com aromas mais doces, florais ou de sabor frutado. Todos esses tucupis, reduzidos lentamente, durante várias horas, uns sob as brasas de um fogão a lenha, cada uma dará um tucupi preto diferente. Além disso, o fogão a lenha acrescente um sabor defumado.
Quem ficou com água na boca, mas ainda não tem acesso ao tucupi preto, pode prepara-lo na sua cozinha. Dois ingredientes básicos são necessários: Tucupi e bastante paciência. E lembre-se da segurança alimentar! Qualquer tucupi deve ser muito bem fervido antes de usar! O que já os ancestrais indígenas sabiam - esse procedimento elimina qualquer vestígio de tóxicos que podem ter sobrevivido eventualmente no caldo, já que se trata de líquido obtido de maneira completamente artesanal. Dá preferências para panelas de barro ou de aço inoxidável, de preferência de boca ampla o que aumenta o campo da evaporação. Panelas de alumínio reagem com a acidez do tucupi e o mesmo se torna acinzentado. Ao cozinhar, tempere com alho, pimentão regional, chicória e um ou dois tipos de alfavaca. A gosto acrescente sal, gengibre, pimenta-de-cheiro e açafrão-da-terra em pó para uma coloração amarela mais intensa. Feito isso, é só esperar, reduzir, reduzir mais um pouco, concentrar e já temos tucupi preto. Aquele que concentra todo o sabor e umami do tucupi!
Arroz de legumes, o meu com bastante caldo, em Portugal chamado de "arroz de malandro" preparei com tudo que achei na feirinha e no meu quintal. O tempero vem do tucupi preto, um tanto de gengibre, alho e sal a gosto. Quem tiver um caldo de legumes à mão, use. Incrementei com pupunha, já cozida, quiabo de metro em rodelas, quiabo assado, espinafre-orelha-de-macaco, ora-pro-nobis, pepino-de-árvore e cebolinha.
Arroz de sobras com ovo - no outro dia o mesmo arroz rendeu outro prato! Panela de ferro, bastante óleo, fogo bem alto e aos poucos vou assando, sempre mexendo tudo que sobrou na geladeira: um refogado básico recebeu uns legumes e verduras, deixei os mesmos bem crocantes, dois ovos que viraram ovo mexido e por fim o arroz. Corrigindo os temperos, tudo levou dois ou três minutos e agora só se deliciar!
As minhas receitas politicamente corretas
Cozinhas seguem modas e também políticas. O politicamente correto está chegando, bem devagarinho e aos poucos à Amazônia. Foi o cantor Xangai que cantava - Se a farinha fosse americana....
Gostaria de expressar aqui o meu respeito para todos/as cozinheiros/as indígenas! Há pouco informação sobre os segredos das suas preparações! Li que algumas tribos usavam e usam tucupi preto em forma de tempero. Outros parece o usam como conservante de carnes de caça e peixes. Os europeus tinham o sal para salgar a carne; e os indígenas o tucupi preto.
Dessa maneira as minhas inspirações são livres. A única exigência - uso ao máximo ingredientes disponíveis localmente, produzidos por ai na região, produtos da terra. Viajei, não na sopa, mas no tucupi preto. Fui lá na terra do umami e do shoyo, já que cor e sabor lembram muito, e voltei. Uma sacada que selou a minha amizade com o tucupi preto. Acho que mesmo de inspiração asiática, mas com ingredientes que tem na esquina, uns preparos poderiam agradar aos paladares locais!
Adoro ceviche! Sigo todos os protocolos sanitários, já que o melhor peixe fresco pode ter parasitas. Compro por isso peixe muito fresco, mas antes de comer ele vai direto para o congelador onde ele permanece por no mínimo 48 h. No dia corto o peixe ainda levemente gelado. Os cubos ou fatias ficam bem mais iguais. O leite de tigre, aquele líquido que cozinha o peixe, eu vario, substituindo a acidez do limão pelo suco de outras frutas ou por um tucupi amarelo, daqueles bem ácidos. Uma delícia! Para o ceviche da foto apostei nos contrastes. Peixe bem claro, usei surubim, se destaca do molho escuro contendo bastante limão, tucupi preto, gengibre, muita cebola roxa e coentro. Acompanha, à maneira peruana, batata-doce em cubos, e milho verde.
Molhos de saladas, as minhas saladas sempre são bem locais ou amazônicas, essa aqui é composta de feijão verde, pepino, jerimum, cozido em cubinhos, e espinafre orelha-de-macaco, gosto de temperar com azeite, sal e pimenta e no lugar do vinagre com polpas de frutas ácidas. Que tal um tantinho de suco de taperebá ou uns muricis amassados? Nesse molho aqui combinei murici e tucupi preto que dão uma excelente, combinação inusitada.
Tucupi preto na marinada
O próximo passo foi testar o tucupi preto em marinadas. Sempre gostei muito de berinjela. Mas desde que a faço com tucupi preto virou um dos meus pratos vegetarianos preferidos. Sirvo no lugar de carne.
Aproveitei a mesma berinjela com tucupi preto, assada, para elaborar daquelas pastinhas deliciosas que sirvo de entrada com pão caseiro. Só colocar no processador junto com um tantinho de alho. Vira a minha versão de babaganuche! Mas o que eu amo mesmo é servir a mesma pastinha em forma de molho para massas! Massa!
Berinjela assada com tucupi preto acompanha o meu arroz de legumes da estação. A receita? Meia hora antes de assar, a rasgo sem ferir a casca, salpico com uma generosa pitada de sal e tucupi preto. Reserve por meia hora. Antes de levar para a panela com um fio de azeite, lavo embora o excesso de sal. Secado com papel toalha, as berinjelas douram dos dois lados. Ah, também poderia ser assado no forno, só que leva um pouco mais de tempo.
Falando do forno lembrei de babaganuche, pastinha árabe feita de berinjelas assadas no forno. Repeti o meu molho de berinjela que gosto de servir com massa. Leva a berinjela tratada como descrito acima, assada no forno, o que leva um tempinho. Aproveito e coloco uma cabeça de alho junto. Corto o topo. Dessa maneira os dentes de alho podem ser exprimidos da casca e vão junto com a berinjela muito bem assada e com bastante cheiro verde no processador. Depois só aquecer novamente e servir sobre o macarrão do seu gosto. Divino e vegano!
Tucupi preto com peixe e carne
Confesso que sou guloso demais para qualquer restrição na minha alimentação. A solução? Sou parcialmente vegetariana! Como peixe ou carne duas, três vezes por semana. Quando como, só peixe fresquíssimo e só galinha caipira. Testei as duas proteínas junto com tucupi preto e me surpreendi. Acho que deveria também ficar divino com aquela carne de porco que vende na feirinha aos sábados. Ainda não cheguei lá. Por enquanto posso lhe servir só a minha telha crocante de pele ou couro de peixe. Já que um bicho tem que morrer que valorizam todas as suas partes, não só filé! Sirvo com vinagrete, esse ai com pequenos cubos de abacaxi. Depois testei o tucupi preto com pirarucu com molho de inspiração asiática e uma galinha caipira com temperos bem locais. Os dois deram supercertos.
Para o couro ou a pele de peixe marinado e assado use a marinada descrita acima (primeira receita junto com o dado de tapioca) composto de sal, pimenta-de-cheiro, tucupi preto, colorau, cominho e gengibre a gosto. Use a pele bem limpa em pedaços maiores ou recortada. Regue com azeite e espere marinar na geladeira por 2-3 horas. Asse no forno em 160° até ficar crocante. Sirva acompanhado de vinagrete de abacaxi, tomate, pimentão e cebola roxa.
Uma bela posta de peixe, aqui de pirarucu, marina numa marinada feita com vinagre, gengibre, açafrão-da-terra, uma fatia de abacaxi, sementes de cominho e coentro, sal, pimenta-de cheiro, cachaça, óleo neutro e a gosto de mel ou açúcar mascado. Vai tudo no liquidificador para depois o peixe marina 2-3 horas nesse líquido. Depois só assa no forno onde se forma uma crostinha. Sirvo com arroz.
Receita Galinha caipira com cominho, coentro e tucupi preto
A receita da galinha caipira que gostaria de compartilhar é muito simples. Conhecidamente a carne de uma feliz galinha caipira demora para amolecer. Que tal dar uma ajudinha com tucupi preto?! Com ele preparo a marinada na qual os pedaços descansam algumas horas. Depois é tudo como sempre. Preparar um refogado, refogar toda a galinha, cobrir novamente com o molho e o forno faz o restante. Lentamente em fogo médio ela cozinha para depois ser servida sob um purê de batata-doce ou arroz branco.
Galina caipira com tucupi preto
1 Galinha caipira cortado em pedaços
Marinada
3-4 colheres (sopa) de tucupi preto ou tucupi reduzido caseiro
1-2 colher/es (sopa)de mel de abelha nativa
1-2 colher/es (sopa) de vinagre suave
2-3 colheres (sopa) de água
½ colher (chá) ou a gosto de coentro e cominho em grãos, pilados
1 folha de louro
2 cravos
1 pedaço de gengibre cortado em palitos finos
2-3 dentes de alho picados
Refogado
3 pimentões regionais em listras
1 cebola picada
Óleo vegetal
Água
Folhas de ora-pro-nobis para decorar
Corte a galinha em pedaços e separe a gordura. Se for necessário lave com limão ou vinagre. Prepare a marinada pilando cominho e coentro e mistura com o restante dos ingredientes. Regue o frango com essa marinada e espere descansar algumas horas ou uma noite. Derrete a gordura reservada e derrete em 3 colheres (sopa) de óleo. Retire os pedaços da galinha da marinada, reserve a mesma e doure aos poucos de todos os lados nesse óleo. Reserve e refogue na mesma gordura o refogado. Devolve a galinha, acrescente a marinada e completa com um pouco de água para não queimar. Sempre precisar acrescente mais água e cozinhe em fogo baixo lentamente durante 2-3 horas ou até a galinha se solta com facilidade dos ossos. Corrija os temperos e sirva acompanhado de arroz branco ou purê de batata-doce. A minha decorei com algumas folhas de ora-pro-nobis.
Bom apetite!