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Dona Raimunda lembra – 16 filhos e apelida de rata da igreja

Dona Raimunda lembra – 16 filhos e apelida de rata da igreja
Susan Gerber-Barata
jun. 1 - 48 min de leitura
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Falaram que ela era uma rata da igreja, sim, de tão devota. Hoje, velhinha, uma das matriarcas de Alter do Chão, debilitada pela idade avançada e o esquecimento que a acomete, Dona Raimunda, com nome completo Raimunda Isabel de Jesus Sardinha, gosta, mas não gosta tanto de olhar pra trás. Ver as crianças todos pequenininhos, dá uma saudade! Criou 16 criaturas, crianças. Sabe, naquele tempo se dava criança “pra criar”. Dava-se as crianças de boca, sem papel passado - como hoje se dá um filhote de cachorro. E ela acolhia todas.

O hábito de doar um filho, aliás, muitas vezes imposto por necessidades, emocionais ou financeiras, persiste até hoje. Tem muitos filhos-do-boto por aí que são criados por seus avós e tinha e ainda tem patrões ou patroas que “adotam” crianças, por exemplo, de empregadas ou conhecidas, com a promessa de lhes dar  uma vida melhor. Umas acabam sendo exploradas, outras não.

Quem hoje cuida da dona Raimunda é a dona Taianna

Como uma moradora que prefere o anonimato, ela deve ter uns 35 anos, relata:

- “Minha avó foi quem me criou. Na época da minha infância eu não tinha como brincar. Nossa vida era na roça e na escola. Hoje não existe mais essa roça. Minha avó, ela sempre batalhou para nos criar. Nós somos três irmãs que fomos criadas pela nossa avó porque nossa mãe....., ela não ligava muito para nós. Ela gostava de curtir a vida e não lembrava que tinha filhas. A minha vida e essa das minhas irmãs foram dessa maneira. Eu ser hoje essa pessoa é graças a minha avó.”

Uns das crias, dos filhos adotivos, voltaram, já adolescentes, para seus pais biológicos, outros não. Dona Raimunda guardava todos os umbigos dos filhos. A parteira de Alter, outra figura emblemática, quilombola forte e mandona, cicatrizava os umbigos dos recém-nascidos com ferro quente.

Criou 18 deles, muito bem por sinal, mas nunca casou. Casar? Casar ela nunca queria. Igual às duas outras irmãs dela. Desde sempre eram elas, as três mulheres e um homem, o pai delas. Uma das irmãs dela hoje vive com ela. Muito bem cuidadas por uma assim dizer “neta”, dona Taianna Larissa Soares de Sousa. Neta sim, de coração, porém não de sangue. Quem adotou e criou dona Raimunda, foi sua mãe. Como ela morreu bem jovem, morreu de parto, dona Raimunda não hesitou nem um instante e assumiu o bebé. Criou mais um, mais uma. Mãe solteira de uma categoria rara, em extinção. Sempre se sustentou ela mesma. Sempre trabalhou, costurou pra fora, lavava a roupa dos outros. Uma matriarca heroica e lutadora como tantas por aí.

Corte e costura ela aprendeu por correspondência. Uma escola de SP lhe mandou as lições, ela mandou de volta as tarefas, no final um vestido inteiro, tubinho, e recebeu, via correio, o diploma! Adorava os moldes de papel que vinham de longe e permitiam a todos acompanhar as mais novas tendências - pregas, calças com botão. Costurava tanto noite adentro que hoje os olhos não prestam mais. Enfim, logo festejará os 90 anos! Quem ajudou firmemente na criação de tantos filhos foi seu pai Hernestino Colares Sardinha. Detalhe – ele, o pai, também cresceu sem pai! Foi o padrinho dele que lhe deu seu nome de batismo.

O pai da dona Raimunda, Hernestino com a Taianne, ainda bem pequena festejando um aniversário.


Alter, Amazônia - eternamente condenado a repetir ciclos econômicos?

No início do século XX a vila de Alter do Chão, como é chamada até hoje, era pacata, uma vila com poucos moradores. Pertence, ainda, ao extenso município de Santarém. Naqueles tempos Alter era tido como mera zona rural, distante, bem distante da “cidade” a qual só se chegava por barco. A estrada ainda não tinha sido aberta. Santarém por sua vez tem posição estratégica, já tinha bem antes da chegada dos colonizadores. Fica no meio caminho entre Belém e Manaus onde confluem o rio Tapajós e o rio Amazonas. Pesquisas recentes atestam à Santarém pré-colonial assentamentos indígenas enormes. Era um ponto de encontro de diversas culturas, um local de grande complexidade social e política, ocupado continuamente por séculos. Uma história que está em processo de ser escrita, ou melhor reescrita.

Mas vamos pular para o ano 1876. Algum lugar por aí tinha aparecido um aventureiro inglês, Henry Wickham. O mesmo contrabandeou uma encomenda que iria se mostrar mais pra frente muito valiosa. Contrabandeou uma carga de sementes da seringueira, árvore nativa que fornecia o famoso látex, matéria prima que ajudou a alavancar a industrialização. No ano 1839 Charles Goodyear inventou a vulcanização que transformou o látex. Esse ganhou novas propriedades e passou a ser usado na fabricação de uma série de produtos, entre eles pneus e brinquedos. Com isso o valor comercial de um produto extrativista da Amazônia aumentou, e muito. A partir do ano 1840 começou dessa maneira em toda a Amazônia o boom da borracha, todo o látex era tirado do meio da floresta. E Henry Wickham roubou esse tesouro e o levou para Inglaterra. Lá, no Royal Botanic Gardens de Londres as sementes foram tratadas, enviadas para Malásia e plantadas em grandes fazendas, acabou o extrativismo. Quarenta anos mais tarde, a Inglaterra começou a dominar com essa nova tecnologia o mercado da borracha e acabou rapidamente no ano 1912 com o primeiro ciclo da borracha na Amazônia.

- Nota da autora: Temos gente na região que até hoje lamentam essa perda.... Os Chineses devem estar muito tristes que lhes foi roubado a soja...

Os dois ciclos de borracha traziam progresso, trabalho e um grande fluxo de pessoas de fora para cá.

Nesse contexto também vale lembrar que essa riqueza exorbitante do primeiro ciclo a borracha se baseava num mecanismo um pouco desequilibrado, chamado de aviamento. Era um tipo de “crédito”, de adiantamento, pelo qual os trabalhadores braçais que iriam se adentrar na selva recebiam do seu patrão antecipadamente as ferramentas e mantimentos necessários para essa aventura que era acordar bem antes que o sol se levantasse e sangrar inúmeras seringueiras selvagens, uma bem longe da próxima. O combinado foi que esse “crédito” fosse abatido em forma de pélas, bolas gigantes de látex, que o empregador vendia. E muitas vezes o “crédito” era tão abusivo que se tornou impagável.

Outra parte do negócio era que a maior parte da riqueza da produção da borracha foi drenada com gastos gigantes, transferida para o sul do país e para o exterior, com reduzido investimento e capital produtivo na região. Além disso, a exploração da borracha alterou significativamente o uso do solo amazônico. Surgiram em vários lugares, tradicionalmente utilizadas por comunidades ribeirinhas e indígenas, novos espaços urbanos.

A vida de seringueiro era dura. Acordava de madrugada, metia-se na mata com a lanterna na cabeça e sangrava as seringueiras espalhadas na floresta. A tarde voltava e colhia a seiva que logo depois tinha que ser defumada e solidificada em grandes bolotas.

Todo esse movimento também deve ter trazido gente de fora para Alter. Uma moradora de Alter lembra que o pai dela tinha um seringal lá bem longe, dias e dias rio acima no Alto do Tapajós. Fazia-se necessário comercializar as bolotas de látex, dias e dias rio abaixo. Viagens que poderiam durar meses. Voltando enfim de uma dessas viagens ao seringal, esse homem levou um susto devastador. Tudo que tinha deixado pra trás, tinha sido destruído. Não sobreviveu alma viva. Provavelmente um ataque de indígenas. Desgostado, pegou novamente o barco rio abaixo e por fim se fixou em Alter do Chão, onde casou novamente e formou uma nova família.

Nos vastos interiores amazônicos, aqui chamam de colônia, o Alter daquele tempo ainda persiste. Uma vida pacata, muitas vezes lembrada com saudosismo, que na verdade era dura, uma luta de sobrevivência. Igual a população local de Alter fazia naquele tempo, se extraia quase tudo que precisava, mera subsistência, da terra, das águas e da mata. Eram roçados de mandioca e macaxeira plantadas, extrativismo em geral, castanhas, açaí, pupunha e muitos outros frutos hoje quase esquecidos, muita pesca e também caça.

Esse grupo vasto e bem diverso de uma população tradicional amazônica os estudiosos chamam de “campesinato tipicamente amazônico” – são posseiros ou proprietários que produzem de maneira autônoma para sua própria subsistência. O que, aliás, pouco diz sobre sua origem que deve ser bem miscigenada, abrangedor e inclusiva.

Mandioca senda descascada beiro rio. No barco na água parte dela vai ser amolecida. Depois moída, misturada à outra, ralada fresca e por fim juntos torradas, viram farinha d´água. 


Governo autoritário, os anos do Getúlio Vargas

Quando Dona Raimunda nasce no ano 1936, os tempos já eram outros. Como dona Taianne conta, sua quase avó, se lembra de muita coisa. Por exemplo, da visita de Magalhães Barata na cidade, muito querido nos interiores, já que ele tinha fama de ser um dos primeiros políticos a sair do gabinete, pegar um barco e visitar as mais distantes regiões do Pará, isso com certa regularidade. Foi nomeado duas vezes interventor federal no Pará, assumiu sua primeira interventoria em Novembro 1930 no primeiro governo de Getúlio Vargas, era um governo autoritário, ditatorial. Barata, famoso pelo seu estilo populista e duro, até violento contra adversários, tolerante e generoso com partidários, admiradores e claro, os menos favorecidos, era como interventor dotado de poderes especiais, quase absolutos. Reinou no Pará até 1935. Diz-se que o lema do Barata era revolucionar o Pará através de valores como moralidade, patriotismo e civismo. No ano 1937 Getúlio Vargas decretou a vigência do Estado Novo. Foram dissolvidos o Congresso Nacional, os legislativos estaduais e municipais, não havia mais partidos políticos nem eleições. Getúlio Vargas estabeleceu para si um mandato de seis anos como presidente do Brasil, uma primeira ditadura.

Cabe aqui uma piada, o humor da região é legendário, que condensa o que se diz sobre as visitas do interventor Barata, cujo ritual integrava um beija-mão. Nessa ocasião recebia as pessoas que chegavam e pediam favores, um emprego, uma máquina de costura, outra graça. A fila era longa e por fim chegou uma mulher que queria ser professora. – “Favor constatado! Temos uma nova professora! Próximo!” - Até veio correndo o assessor lhe cochichando ao ouvido: - “Essa senhora é analfabeta!!!” - A solução dada pelo interventor veio a cavalo: – “Aposenta!”

Lembranças do Barata guardadas até hoje.

Sobre outra ação do Interventor Federal Magalhães Barata pode-se ler nas memórias de Santarém do Estado Net: - Mesmo achando Santarém uma cidade bonita pela própria natureza, o interventor via necessidade de melhorias nas edificações da cidade. Mandou no ano 1933 o prefeito Ildefonso Almeida, igualmente nomeado sem eleição, baixar um decreto que estabeleceu um prazo para os proprietários melhorassem suas casas, edifícios e galpões “de acordo com as plantas que forem aprovadas pela Prefeitura”. Em casos de não comprimento, os proprietários iriam se ver com a prefeitura no em frente do juiz.

Como seu Gabriel Buchale nos conta:

- “Naquele tempo Alter foi comandada pelos patriarcas/matriarcas. Não se discutia nada, não se contestava, apenas obedecia. Tomava-se benção dos mais velhos, inclusive do irmão mais velho.”

Dona Raimunda agora na velhice sente muita saudade daquele “Alter”. O “Alter” do qual ela sente saudade não é o bairro Novo União não, onde ela enfim tem uma casa. Esse bairro relativamente novo para ela, definitivamente, não é Alter! Sua Alter tinha só duas ruas, Turiano Meira e Dom Macedo Costa, a Lauro Sodré só veio depois. Fala que foi o seu pai, funcionário da prefeitura, que abria a estrada que levava de Santarém para Alter. Também foi seu pai que conseguiu o motor para iluminar essas duas humildes ruas. O motor foi ligado as 20h e desligava meia noite.


A relação com a terra na região tradicionalmente é bem diferente. Para uns ter terras é um tipo de poupança. Vende-se um terreno por necessidades como uma doença inesperada ou simplesmente um aniversário de criança. Desapegados, outros trocam casas, terrenos, uma oficina entre si, outros contra um carro, uma moto. E uns, devem ser verdadeiros latifúndios, oferecem um terreno como prémio (!)d no Bingo da igreja.


A questão das terras amazônicas

Enquanto isso, as vastas terras amazônicas persistiem. Parte deles tinham sido concedidas em sesmarias durante a colonização, que eram grandes áreas de terras distribuídos a particulares para incentivar a “ocupação” e colonização. Parte deles virou as assim chamadas “terras devolutas”, terras públicas “sem dono”, as mesmas foram, o decreto é do ano 1850, posse do estado. Mais tarde a constituição de 1891 incorporou-as à união e aos estados que leva ao fato que especialmente no Pará existe uma concentração fundiária que deixa grande parte das terras em mãos de poucas famílias. A constituição de 1988 enfim estabeleceu que só as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, ao longo das vias federais e da preservação ambiental são bens da União, enquanto os demais pertencem aos estados.

 

Bem ao lado de Alter surge, um segundo ciclo da borracha, Belterra

Dona Raimunda nasceu em 1936, sua lembrança da visita do Barata deve se referir a segunda interventoria que iniciou-se no ano 1943 e durou até 1945. Ele foi eleito, já com a redemocratização, em 1945 senador pelo Pará.

Casa original americana em Belterra, americana também a planta com cozinha americana

Foi nesses tempos fervilhantes que a ainda pacata Alter ganhou uma vizinha ilustre. Foi erguida no meio da selva uma cidade modelo americana. No ano 1943 o empresário norte-americano Henry Ford planejou e levantou uma gigante plantação de seringueiras, uma monocultura, querendo transformar essa região na maior produtora de borracha natural do mundo. Precisava urgentemente novas fontes para a sua produção de pneu de borracha - durante a Segunda Guerra Mundial, todos os países produzindo látex estavam sob domínio do Japão. A nova vila, Belterra, ainda pertencia ao município de Santarém, se emancipou somente no ano 1995, eleva plantações enormes de seringueira com grande subsídio do governo brasileiro. O mesmo governo que recruta, novamente no Nordeste, os assim apelidos “soldados da borracha”, mão de obra barata. Estimula durante toda a década de 1940 a ocupação do Centro-Oeste com a chamada “Marcha para o Oeste” e ao mesmo tempo implementou o “Plano de Integração Nacional” tendo como fim estimular a ocupação da Amazônia supostamente vazia..... em outras palavras, citando trabalhos acadêmicos recentes: O projeto positivista nacionalizante do governo ditatorial do Brasil considerava que ser índio era um estado temporário e transitório; ser “índio” era uma condição temporária que, eventualmente, desapareceria com a ‘‘aculturação’’ e com o embranquecimento das populações.

No macro, no ano 1953, Getúlio Vargas, já como presidente eleito, cria a primeira de uma longa lista de superintendências, a tão famosa como mal falada SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia) a qual enfim cabe a presentear a Amazônia com o tão desejado “progresso”. Progresso significava mudar estruturalmente a região amazônica, fomentar a agricultura e pecuária e principalmente o setor gomífero. As bolotas do látex extraídas, parece, eram transportadas via Alter do Chão o que trazia certo desenvolvimento e também um fluxo de gente de fora.

Mas em Belterra, como já tinha acontecido anteriormente em Fordlândia, a monocultura da seringueira não se sustenta, rapidamente as plantações se encontram atingidas e dizimadas, vítimas de doenças e pragas, outro desastre anunciado ou como se diz hoje, mais um ciclo econômico se fecha.

E por falar dessa parte da história, Santarém também oscila até hoje, aliás, como toda a Amazônia, entre duas lógicas opostas: extrair/produzir para o mercado externo, conforme cada um dos ciclos econômicos mais distantes e também o atual da soja mandava e manda. Muitos desses ciclos iniciam fulminantemente para depois quebrar igualmente rápido, todos repetem a dependência de mercados externos. Era assim com o cacau, plantio semi-domesticado, que perdurou por quase dois séculos no tempo da independência e durante a guerra da cabanagem por aí, com os dois ciclos da borracha, dos anos 1879-1912 e 1943-1945. Depois no final da década de 1930 iniciou-se o ciclo da juta, criando uma alternativa de renda pós-crise da borracha. Seu declínio chegou nos anos 1970.

Dona Raimunda conta da Jutasa, uma empresa que fabricava juta. Lembra de um trabalhador de lá. Inalou durante seu trabalho insalubre constantemente o pó das fibras da juta. Morreu jovem com 47 anos de um câncer de pulmão.

A partir da segunda metade da década de 1970, inicia-se outro ciclo. Essa vez de mineração, alavancando o transporte fluvial, aproveita-se as jazidas de bauxita no Baixo Amazonas. Houve entre 1950 e 1960 a exploração extrativista do pau-rosa e da madeira em geral, o que ainda segue, e na década de 1980 de uma intensificação de atividade aurífera.

Soja e mais soja na região de Belterra

A partir de 1970 inicia-se outro ciclo, esse da soja e outros agronegócios que trazem a multinacional Cargill para Santarém. Ciclos que traziam e trazem um constante fluxo de pessoas para Alter e região. São as mesmas pessoas que localmente são chamados, bairrismo amazônico, de “estrangeiros”. E estrangeiro são todos, unissonos aqueles que não têm o privilégio de não ter nascido aqui nestas terras abençoadas, inclusive os Santarenos (!).

 

Dona Raimunda conta como era lá, no Alter ainda tão viva na memória dela. 

Filha de mãe alemã e pai português com índio

Dona Raimunda fala que é filha de mãe alemã e pai português com indígena. Fala que já criança era sempre muito ativa. Mantém até hoje, fala que não sabe se é preguiça ou hábito mesmo, os costumes do interior. Come quase só peixe. Carne de boi raramente entra na cozinha da sua casa.

Costumes simples, simples que nem a praça do centro de Alter do Chão que tinha bancos sem encostos em volta. A orla, como se conhece hoje, essa veia muito mais tarde. Era só a praia de areia branca em frente ao centro e claro a igrejinha linda. Na lembrança dela todos eram aparentados, parentes entre si. Todo mundo se conhecia. Tudo era feito em puxirum. Plantaram por exemplo, queriam embelezar o centrinho, plantas na praça. Uma vez plantado, cada um ganhou o seu metro quadrado para cuidar. Lembra-se que tinha que acordar às 5h da manhã para pegar água na praia, balançando na cabeça, para regar suas plantinhas. Água encanada? Só muito mais tarde.

Dona Raimunda lembra que a areia da praia era branquinha, branquinha e cantava. Imita o som. Fala que a areia roncava. Tomava-se banho lá também. As mulheres levantaram seus vestidos sobre a cabeça, empelotavam os mesmos e entravam peladas nas águas cristalinas. Banho tomado, simplesmente desciam os vestidos e seguiam a vida.

O ritmo da vida era outro. Tudo corria devagar. As pessoas sabiam o seu lugar. Uma simples saída de casa para fazer uma comprinha ou visitar parentes podia durar horas a fio – encontravam-se tantas conhecidas e moradores no caminho. Sempre tinha muito papo pra bater com cada um que passava em frente da casa. As fofocas rolavam soltas, se comentava tudo. À noite, hábito que persiste nos interiores mais remotos até hoje, as pessoas colocavam as cadeiras na rua e cada um que passava, parava para bater um papo.

Casa de farinha

Cada pessoa tinha sua roça, seu roçado. As roças da dona Raimunda estavam lá no Carauari, perto do Beloalter. Lá era lugar de plantar mandioca e lá era a casa de farinha. Mais pra dentro se chamava Brotinho e se chegava lá pelo caminho dos fundos. A mandioca foi deixada de molho lá no igarapé para depois virar farinha. Dona Taianna lembra de uma iguaria que se preparava lá – preá, um pequeno roedor, moqueado no leite do coquinho da palheira. Foi nesse tempo que ainda tinha três tipos de piracuí, cada um elaborado com outro peixe. E o lago Carauari ainda pertencia a população que jurava que ele era cheio de segredos. Tinha horas que não podia passar por lá sem sofrer consequências inesperadas.

Mas como o curso da vida segue, as modernidades também chegaram a Alter. Mudou a apropriação e o uso das terras que de repente tinham certo valor. As relações sociais e os costumes baseados no extrativismo começaram, um após outro, a roer, quebrar, perderam sentido e valor. Uns costumes foram mudados a força também. Muitos moradores “tradicionais” de Alter, por exemplo, nunca tinham se preocupado em elaborar qualquer documento formal de posse das suas terras, um registro de cartório, a maioria das terras pertencia mesmo ao estado, eram de uso e usufruto comum. Era hábito, mantido até hoje, de trocar ou doar terras a quem precisasse. A maioria das terras de Alter tinham “donos” sim, mas nenhuma prefeitura os reconhecia. Podia acontecer que alguém que tinha só um compromisso de boca, de repente fosse chamado de “invasor” de terras alheias. Apareciam do nada supostos novos donos exatamente daquele pedaço de chão, mostrando documentos de posse e nem sempre era claro a qual “andar” do terreno esses se referiam. Até hoje pode acontecer que o mesmo terreno tenha vários donos ou como os humor local descreve, nunca se sabe se compra o térreo ou um dos outros andares....

Quem constrói com palha e barro constrói perfeitamente adaptado ao clima, com recursos locais, mas não pra eternidade.

Um morador que morava lá na praia do Lago Verde, onde hoje está o hotel Beloalter, lembra-se:

“Foi quando uma vez voltei da vila quando levei um susto, um susto grande. Minha casa não existia mais. Tinha pegado fogo. Perdi tudo.“

Naquele tempo ainda muitas casas eram de barro, a cobertura de palha. Lhe falaram que agora ele tinha que sair. Iriam lhe dar outra casa, outro lote, uma rua pra dentro, um pouco mais pra dentro, não mais diretamente na praia. Enfim, Alter tinha muita terra, terras em abundância que não valiam grande coisa. Os mais espertos, comerciantes, por exemplo, como seu Mingote, seu Argentino e seu Bebè, trocavam de tudo. Trocava-se uma casa contra terreno, terreno contra farinha, também dava-se muita terra para quem precisava. Uma das poucas formas de se resguardar do assalto às suas terras, surgiram os sindicatos dos trabalhadores rurais e a Pastoral da Terra. Junto com as associações indígenas começaram e enfrentar essa questão até onde lhes foi possível.

Praias, aqui do Beloalter, aos poucos estão sendo cercadas se tornando particular

No ano de 1948 Alter foi elevado a distrito, distrito de Santarém. A partir da década de 1950, o extrativismo da borracha entrou pela segunda vez em declínio, abalando a economia local de vez. A população voltou a se manter com pesca e caça, extrativismo de muitos tipos e trabalhos agrícolas em pequena escala no cultivo de arroz, milho, feijão e mandioca.

 Alter do Chão só com a praia branca


O primeiro rádio e a Petrobras e outra ditadura, dessa vez dos militares

A primeira rádio dona Raimunda vi e ouvi foi quando 1953 a Petrobrás passou por aí. Ela lavava roupa para eles. O pai da dona Raimunda naquele tempo ainda era seringalista, nos bons tempos tinha seis seringueiros que trabalhavam para ele. Até ele foi ameaçado de morte por causa de um terreno e se mudou para Santarém. Na rádio, quem sabe tocava também a música nova chamada Bossa Nova. Cheio de bossa também era o presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, carinhosamente apelidado de JK, democraticamente eleito que governou o Brasil entre 1956 e 1961. Seu seguidor João Goulart, ou Jango, sofreu um golpe e no ano 1964 começam os anos de chumbo que durarão até 1985. Naquele tempo, Alter nem escola tinha. A primeira escola, a Dom Macedo, só foi erguida no ano 1969.

Os militares que assumiram o poder combinavam patriotismo com uma rígida e severa doutrina. “O nacionalismo da Ditadura militar aumentou, uma faca de dois gumes, entre 1969 e 1973 através do paradoxo „Milagre Econômico” a renda dos Brasileiros, mas também a pobreza. O que não impede grande parte da população de render-se à euforia e ao progresso prometido. Poucos se importam que o regime autoritário e repressivo, fechou o congresso e caçou os direitos civis. Quem pensava diferente, podia ser preso sem direito a defesa e muitas pessoas simplesmente sumiram. Os militares tinham um ambicioso projeto geopolítico de integração e controle da Amazônia. O almejado “desenvolvimento da Amazônia” foi vista como uma tarefa de mega empreendimentos e empresas, devidamente incentivadas por créditos, incentivos fiscais e grandes investimentos em rodovias estratégicas. No Oeste do Pará a aposta foi no agronegócio e no turismo. O gigante patrimônio de terras devolutas foi transferido para o Instituto de Colonização e Reforma Agrário INCRA, criado em 1970.

Ainda em 1965 o governo militar fechou e isolou o Brasil de novo, porém devagarzinho e lentamente a relação com a natureza se modifica. No ano 1967 funda-se o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal – IBDF e cria-se unidades de conservação como a Flona, Floresta Nacional do Tapajós. Isso ocorreu com bastante rumor e ruídos. O IBDF, convencido que as Flonas só poderiam ter bichos e natureza, tentou expulsar a população tradicional que morava lá. Os ribeirinhos foram forçados a se organizar e resistir, demarcando suas áreas. Houve perseguição, brigas extensas na justiça e até assassinatos. O IBDF se tornará mais tarde parte integrante do IBAMA (1989, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), hoje importante instância fiscalizadora contra a destruição da floresta. Também em 1967 nasce a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA) e a plantação maciça de soja se intensifica no país e começa a tomar conta de Santarém.

A oposição também se organiza. A FASE, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, uma ONG de educação popular e defesa dos direitos humanos, começa a atuar no Pará. Lança na década de 1960 a base de um trabalho ligado ao associativismo e cooperativismo e depois do golpe de resistência à ditadura. Deve ter sido naquele tempo que surgem os movimentos de resistência do Eixo Forte. Em Alter nasce em 1965 o Luzo, clube de futebol local e a educação também vai pra frente. Surge o progresso em forma do grupão escolar. A comunidade constrói com as próprias mãos sua primeira escola com duas salas, a Dom Macedo Costa, pronta no ano 1969.

No ano 1969 a comunidade se une e constroi para os seus filhos o prédio que abrigará a escola Dom Macedo Costa

No mesmo ano as associações da vila se organizam no Conselho de Desenvolvimento Comunitário, órgão muito necessário para fazer frente à prefeitura, tentando dar conta das muitas demandas de uma vila que também quer sua parte do progresso.


Dona Taianna que hoje cuida da dona Raimunda e da irmã dela

Dona Raimunda, na sua casa em Alter, ao lado da sua filha/neta lembra como ganhou do Fernando Guilhon, engenheiro e primeiro governador civil do Pará, governou entre 1971 e 1977, nomeado ainda em plena ditadura que durou até 1985, uma caixa com louças, uma sopeira, tudo muito chique. Tinha nada parecido numa casa cabocla daquele tempo. Tudo era bem simples, como nos interiores. Diga-se que Fernando Guilhon era muito discreto e parece que nenhum governador do Pará esteve mais vezes em Santarém do que ele. Preferia visitar alguns lugares e determinadas pessoas, mantendo-se com toda discrição possível para o cargo que ocupava.

Na intimidade se seguia muitas outras regras. Ameaçava trovoar, se corria para cobrar os espelhos. Pisar de pé nu no chão frio de madrugada trazia resfriado, gripe ou coisa pior. Quem saísse quente do fogão não podia tomar água gelada. Quebranto, friagem, olho gordo, seca-pimenteira, curandeiros andavam soltos e muitos males ainda foram curados com garrafadas milagrosas.  Mulher menstruada não pode comer cupuaçu. Ainda muitas crianças nasciam de parteira em casa. Quem torcia o pé, dava um mau jeito ou caiu da rede, procurou a puxadeira que tinha banha de cobra e outros segredos. Crianças que choravam muito se levava até alguém que estava avisado na arte de benzer ou na desmentidora.

O professor Alfredo Santos se lembra muito bem como era trabalhoso pegar água no rio ou numa outra fonte.

Um dos fenômenos em toda a região é que muitas comunidades que vivem do lado do rio até hoje só podem sonhar com água encanada.

Quem não tinha muito, a vida não poupava. Uma moradora que prefere o anonimato conta:

“No ano 2003 eu ainda ajudava minha avó tirar água no peneiro. Não tínhamos água encanada. Iríamos buscar lá na beira do rio para trazer aqui em casa. Hoje já não se faz mais isso. É tudo moderno.”


Dona Raimunda tentando identificar na coleção de fotos antigas dela quem era quem e onde acontecia a procissão do Sairé antes de mudar para a praça do Sairé.

Ponto alto, as festas

Ponto alto de todas as vidas pacatas dos interiores eram as festas. Alter do Chão logo, logo pegou fama por suas festas lindíssimas. Dona Raimunda lembra, por exemplo, que para a festa do São Raimundo em Santarém sua família iria de canoa, remando a noite inteira para chegar de manhã cedinho na cidade grande. Numa dessas viagens  foram perseguidos por uma cobra grande. Mas não só de cobras. Conta-se sobre a Praia da Menina Morta a seguinte estória triste. Não sei a data com precisão, mas acho que foi naqueles anos 60. Relata que um dos filhos do delegado, um senhor e seu neto saíram da comunidade de Curipatatá com destino a Santarém. Ao tomar conhecimento dessa viagem, uma família pediu carona ao senhor e que esse fizesse o favor de levar sua filha de 13 anos, até Santarém. Feito, os três seguiram viagem, ao chegar na praia do Cururu onde almoçaram para depois descansar um pouco. O senhor, já com intenções maliciosas com a moça, pediu ao neto que vigiasse a canoa enquanto ia buscar alguma coisa com a moça. O menino, por ser muita criança, não ficou sozinho e resolveu segui-los, até mesmo porque já estavam demorando. Testemunhou o crime de estupro seguido de assassinato. O senhor violentou a moça e depois bateu em sua cabeça com um remo. Enterrou o corpo na areia, pegou o garoto e seguiram viagem.

Por fim a família deu falta da moça. Indagado sobre o fato, o senhor relatou que ela havia seguido para a casa de parentes em Santarém, só que nunca chegou lá. Tentou criar a tese que ela teria se perdido na cidade. O menino traumatizado com os fatos, durante muito tempo, não conseguiu dormir. Sonhando, falava dormindo, contou o que havia acontecido. Fato que enfim chamou a atenção da sua família. Indagado enfim contou toda a história triste e o senhor foi preso e enfim confessou o crime. A polícia voltou até o local e foi constatado que havia um corpo. Contou-se ainda que depois que o senhor foi preso, foi transferido para a cadeia na capital e nunca mais alguém teve notícias do mesmo. Mas o nome da praia ficou de lembrança da Menina Morta.

O Sairé era o grande acontecimento e toda a comunidade participava ativamente!

Já naquele tempo a vila de Alter do Chão era famosa por seu capricho com datas festivas. As festas juninas devem ter sido memoráveis. Uma modalidade que se chamava “Cordões de Pássaros”, parece que eram comum em bairros e comunidade de Santarém e de outros municípios da região do Baixo Amazonas, foram apresentados. Era uma espécie de teatro popular que encenava o drama da caçada, morte e ressurreição não de um boi, mas de um pássaro, personagem central da brincadeira. Outros eram o caçador, fazendeiros, matutos, indígenas e claro, nobres. Depois disso deve ter surgido o sempre saudosamente lembrado Cruzador Tupi. Esse aparentemente foi apresentado nos anos 1950, 1965 e 1966 em Alter, e na Feira da Cultura Popular, em Santarém, em 1969. Nome dado a uma pequena embarcação contava toda sua viagem. A mesma foi encenada com músicas, versos, danças e as personagens devidamente uniformizadas de marujos. Tudo começava com a traição do imediato do navio que anseia assumir o comando do mesmo, em seguida ocorre um problema na caldeira, a quebra do leme e o barco fica sem direção. O comandante manda prender o imediato que tenta incendiar o barco, por vingança. O folguedo termina com a reconciliação entre as partes.

Os marujos do Cruzador Tupi

O hoje famoso Sairé é ressuscitado no ano 1973 quando ainda é festejado praça central como dona Raimunda bem lembra. Dança-se a valsa da ponta do lenço.

"Só papai dançava, a mãe não gostava de dançar não."

Preparativos para mais um Sairé


Ditadura militar desengatilha o turismo e gentrificação em Alter

Dentro de um contexto maior, o Brasil voltou seu olhar para a Amazônia. Com Castelo Branco no poder, cria-se o slogan: „Integrar para não entregar“ a Amazônia. Lançado em 1970 por Emílio Médici, o plano PIN (Programa de Integração Nacional), um projeto gigantesco de migração interna, prometendo „Terras sem homens (Amazônia) para homens sem terra (Nordestinos)“ querendo promover o desenvolvimento econômico das regiões Norte e Nordeste. Visava colonizar a Amazônia, basicamente através da abertura de duas estradas: Transamazônica e Cuiabá/Santarém. Inicia no ano 1970 a construção da Transamazônica, atravessando o Brasil do oeste ao leste, um tipo de válvula com a meta de conquistar o “vazio”(!) da Amazônia, evitando uma reforma agrária. Nessa época de forte repressão política e censura estrita, os militares incentivavam a ocupação de terras por fazendeiros do sul, resultando em desmatamento e exclusão social. Falhou parcialmente em assentar nordestinos e os danos para os grupos indígenas eram gigantes. Conquista-se a floresta tropical, dessa vez através de garimpeiros, pequenos fazendeiros, posseiros e no caso de Santarém e Alter com turismo.

Localmente chamados de arigósos, Nordestinos fincavam raízes fortes na região, muitos deles no comércio e na política

A partir da década de 1970 Alter do Chão começa a receber um fluxo turístico considerável. Cria-se a Embratur que garimpa lugares espetaculares para desenvolver o turismo no Brasil inteiro. Alter é incorporado no desafio do Governo Militar e da elite local para modernizar de vez o Norte do país. A imagem que se cria da Amazônia é de uma selva inabitada. Valoriza-se quase unicamente seu patrimônio natural. A população local é empurrada para um nicho meramente exótico.


Hotel Tropical, um prédio memorável, que depois virou Barrudada

Em Santarém surge o pomposo e moderníssimo Hotel Tropical, hoje Barrudada, empreendimento da Companhia Tropical de Hotéis, subsidiária da Varig. Essa empresa recebia incentivos fiscais e financeiros do governo – o Brasil tinha que se tornar grande, moderno e integrado. Os turistas que chegam em Alter são na maioria de navios grandes, transatlânticos gigantes que desovam praticamente só estrangeiros que ficam pouco tempo. Pontos emblemáticos de fácil acesso como a ponto de Cururu, originalmente na propriedade do Estado do Pará, foram vendidos. Passam a ser “points”, estritamente limitado aos hóspedes do grande hotel. O mesmo destino seguem outras áreas, terras da União, claro preferencialmente aqueles com maior valor e interesse ecológico e paisagístico.

Enquanto isso, o turismo interno continua. Como conta Dona Raimunda, quando já moravam em Santarém, Alter era para passar todas as férias. O ônibus se chamava Passarinhão, pegava no canto da padaria na praça São Sebastião. Todas as casas em Alter estavam sempre abertas, se deixava a roupa no varal e sapatos fora. Ninguém mexia em nada.

 

Decoração de festa junina e do Sairé de 2007

Alter se espalha, gentrificação e fortalecimento do movimento indígena

A partir do ano 1979, sentindo a pressão internacional, o Brasil começa a rever as suas estratégias protecionistas, autoritárias e paternais, abre-se passo a passo. Infelizmente a dívida externa alcança em 1982 tamanhos gigantescos. O modelo autarco dos militares, substituindo todos os importados por produção própria, se torna inviável. Movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) e a Pastoral da Criança e Pastoral da Terra, as duas apoiadas na teologia da libertação pregada por Dom Hélder Câmaras, estreitamente ligado à igreja católica, começam a se organizar. Em 1984 forçam protestos gerais e manifestações "Diretas Já" aos quais grande parte da população aderiu ! Em 1985 assume o vize-president José Sarney, o mesmo que ocupava durante a ditadura cargos altos, após a morte repentina e inesperada de Tancredo Neves como primeiro presidente civil, porém em eleições indiretas, a presidência. O mesmo Sarney declara o moratório do não pagamento da dívida externa como o FMI.

Em Alter é a festa do Sairé que passa por grandes transformações. Joaquim Lira Maia assume a prefeitura e recebe o pedido da comunidade local de mudar a festa para um espaço com mais projeção e de uma mudança de data. Tinha a festa sido festejada até 1996 na praça central, mudou agora para a praça do Sairé. E para poder usufruir todas as belezas das praias, especialmente da ilha do amor, a festa muda de julho para setembro. E por falar da Ilha do Amor, em fevereiro de 1980 nasce, de maneira formal, a Associação dos Catraieiros de Alter, que conquista! A escola consegue no ano de 1992 a implantação do SOME – Sistema de Organização Modular de Ensino para o ensino médio – (como o próprio nome diz, era realizado por módulos e os professores vinham na sua maioria de Belém) para o ensino médio. Logo em seguida, está sendo implementado o Ensino Regular que começou a funcionar à noite na Antônio de Sousa Pedroso com turmas do 1, 2 e 3 ano.

Enquanto isso, muitos moradores do centro vendem seus terrenos e casas e se mudam para as periferias, as quais, Alter está crescendo a olhos vistos, carecem de serviços básicos de infraestrutura. O acesso regular à energia elétrica em Alter, por exemplo, só veio através do projeto Tramoeste, concluído em 1999. E claro - Alter ainda não dispõe de um sistema de água encanado e continua o privilégio de algumas casas de ter poço artesiano próprio. A autora conhece um morador que lava até hoje, como era costume naqueles tempos, roupa e louça no rio, no mesmo rio onde ele também toma seu banho diário e tira o peixe de sustento. Naquele tempo esse ritual diário de carregar água era reservado para as mulheres. Em 1998 se constrói enfim a Everaldo Martins, zelando o destino que muda definitivamente de uma vila de pescadores em balneário. Contrariando todas as incertezas, a ocupação, bastante desordenada, oportunista da vila inicia com todo vapor. Oferta e procura reinam.

Uma moradora que prefere o anonimato conta:

“Aconteceu com minha mãe. Vou contar essa estória que aconteceu com minha mãe. Certo dia, minha mãe estava limpando o terreno dela quando ela ouviu as pessoas mandarem ela parar de limpar. Mandaram ela se retirar do terreno porque aquele terreno já não era mais dela. Praticamente expulsaram ela do seu próprio terreno.”

Alter enfim se embeleza com uma orla. Sua manutenção parece um pouco complicada

O crescimento urbano continua desordenado. Enquanto isso cria-se aos poucos a grife “Alter do Chão”. Havia três pousadas que ofereciam, como se diz, pouco conforto e menos privacidade ainda. Vieram ONGs, embaixadas, ministérios, trazendo seus eventos. Criou-se no ano 1991 onde hoje fica o hotel Borari, o Museu do Índio que foi fechado no ano 2000. O primeiro grande hotel foi erguido em 2001, localizado num lugar privilegiado. Mas a vila sabe o que quer, mesmo que os ruídos continuem. Nos bastidores na cidade se fala da “República independente de Alter do Chão. Não sem causa. Em 1997 surgiu na coordenadoria Municipal de Desenvolvimento Urbano, CDU de Santarém, um empresário manauara chamado de Rui Nelson que se auto-intitulou dono de muitas terras em Alter do Chão. A briga foi feia.

A competição entre os dois botos, Tucuxi e Cor de Rosa hoje faz parte do Sairé

Em contrapartida, as festas se arrumam. Surge no ano 1997 um complemento para o rito religioso do Sairé. Edilberto Ferreira Costa e Mauro Vasconcelo fundam junto com muitos membros da comunidade, os dois grupos folclóricos dos Botos, Boto Tucuxi e Boto Cor-de-Rosa. Daqui pra frente os dois iriam rivalizar e competir quem seduz com mais elegância e galanteria.

 

Redemocratização

Ter sofrido brutalmente com a ditadura militar, o movimento indígena brasileiro se organiza na resistência contra a ditadura e em 1988 delegações de vários povos indígenas participaram da Assembleia Constituinte e com isso conquistaram seus direitos garantidos pela essa nova Constituição. Devagar mais sempre começa a se difundir e expandir a noção de democracia, de direitos e deveres dos cidadãos. Hoje se sabe que o mito da floresta amazônica virgem é ultrapassado. Sabe-se que há pelo menos 12 mil anos há presença humana na Amazônia. No ano 1998 acontece na Flona Tapajós uma pequena revolução. Uma comunidade se declara Munduruku e outros seguiram. Em Alter são os Boraris que vão à luta. Atendendo uma demanda do povo Borari no ano 2003 serão identificadas e delimitadas as terras Indígenas Borari e instituídos por uma portaria da Funai em 2008.

Já no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) com o fim da hiperinflação, e seu seguidor Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) a vila Alter do Chão ganha novo rumo. No ano 2009 Santarém enfim ganha a UFOPA, a primeira Universidade Federal do Oeste do Pará. No ano 2013 se funda a rádio Alternativa FM de Alter do Chão. A vila aprova com intensa participação da comunidade o Plano de Uso da APA Alter do Chão. Esse infelizmente é revisto em 2016 e “anulado” pela aprovação da câmara municipal no ano 2018, contrariando tudo que tinha sido proposto pelos movimentos sociais da vila.

O restante é conhecido. O Guardian, o jornal inglês, cunhou o título honroso e merecido de Praia mais bonita do Brasil. Veio a filmagem de Tainá 3, a Globo que gravou aqui a novela Amor Eterno Amor. Alter se tornou conhecida lá fora como destino cobiçado.

Quando eu, a autora, veio morar aqui em Alter do Chão deve ter sido por volta de 2014, aprendi logo uma lição que era chocante pra mim. Iniciando as chuvas, muito bem vindas, transformaram a casa numa única goteirada. Paredes lavadas por cachoeiras, rio, dilúvio no meio da minha sala. Pingava no sofá, inundava a cama, não tinha baldes, bacias e outros recipientes suficientes para canalizar ou no mínimo limitar o estrago. Logo chegou um empregado. Comentou seco, ignorando meu estado na beira de uma crise nervosa:

“Dona Susan, é assim mesmo!!!!”

Levou mais uns dias e algumas baldes cheias de goteiras e o assunto estava resolvido. Estou mais com aquela menina, outra colonizadora branca, interessante e de fora, de bem longe, que me mostrou a sua mais nova tatuagem indígena, uma tartaruga estilizada feita de jenipapo, aqui em Alter do Chão. A tartaruga, ela falou, vai devagar, mas persiste, sempre.

O “É assim mesmo” virou um tipo de lema, uma explicação minha para tudo que pouco entendo.....

 

Fontes:

https://o-boto.com/blog/a-disputa-por-alter-do-chao-um-debate-necessario

Uma Santarém mais antiga sob o olhar da Arqueologia

https://www.academia.edu/35805096/Uma_Santar%C3%A9m_mais_antiga_sob_o_olhar_da_Arqueologia

Inventário Turistico Santarém PA

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.setur.pa.gov.br/sites/default/files/iot_santarem_18_12_18-ilovepdf-compressed_0.pdf

https://www.brasildefato.com.br/2022/08/16/como-as-terras-publicas-de-alter-do-chao-estao-sendo-vendidas-de-forma-escancarada/

https://www.ufopa.edu.br/comunicacao/comunica/jornalismo/ufopa-na-midia-2/2022/outubro/juiza-do-trabalho-suspende-leilao-da-ponta-do-cururu-em-alter-do-chao/

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.ufopa.edu.br/media/file/site/ufopa/documentos/2019/188b84863ee2f6657de99d57867e6704_930kVAq.pdf

https://o-boto.com/blog/quem-e-vandria-borari

https://o-boto.com/blog/do-caribe-la-na-amazonia-e-da-balburdia

Amazônia em simbiose marcas de humanidades que enfrentam o Antropoceno

Paper Anne Rapp Pi Daniel

https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgzQXKWctZGrtFkzHjsQKFSwVhQKr

https://www.academia.edu/113705379/QUANDO_O_PRESENTE_VISITA_O_PASSADO_REFLEX%C3%95ES_DA_ARQUEOLOGIA_SOBRE_O_FUTURO_DA_AMAZ%C3%94NIA

Eduardo Góes Neves, Santarém, cidade de todos os tempos

https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgzQZTMTtpCsHGCPGrTDPztStmlKj

Na Margem e à margem - Claide de Paula Moraes 

https://www.academia.edu/15360913/NA_MARGEM_E_%C3%80_MARGEM_ARQUEOLOGIA_AMAZ%C3%94NICA_EM_TERRIT%C3%93RIOS_TRADICIONALMENTE_OCUPADOS?email_work_card=abstract-read-more

https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.175/5378

http://www.blogdocolares.com/2023/11/historia-do-tropical-hotel-de-santarem.html

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/viewFile/719/1526

https://fase.org.br/pt/quem_somos/quem-somos/

11.Artigos+-+O+baratismo+no+Pará+mito+e+realidade.pdf

https://www.oestadonet.com.br/noticia/5396/a-rebeliao-de-1932-e-o-inicio-do-baratismo/

https://periodicos.saude.sp.gov.br/cadernos/article/view/35754/34143

https://imazon.org.br/regularizacao-fundiaria-no-para-afinal-qual-o-problema/

https://interessenacional.com.br/regularizacao-fundiaria-e-desenvolvimento-na-amazonia/

Linha do Tempo do Baixo Amazonas Paraense: (Re)Territorialização de um Espaço de Várzeas Doc366.pdf Infoteca Embrapa



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