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Cupulate encontra Inteligência Artificial

Tendas futurista contém laboratório e sala de aula
Susan Gerber-Barata
ago. 6 - 14 min de leitura
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Fecho os olhos, degusto o cupulate, derretendo devagarinho no céu da boca, revelando, liberando aos poucos cada um dos seus sabores. Detecto uma acidez agradável, cremosidade, notas inesperadas de fruta. Lembra chocolate de primeira qualidade, com alto teor de cacau, mas consegue ser ainda mais complexo. Roubo mais um pedacinho da barrinha linda. Traz em relevo estampada a logomarca da Amabela, Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra ou do Amazônia 4.0. Devidamente empacotado em celofane biodegradável, pronto para consumidor final, ganha uma embalagem coloridíssima e apetitosa, mostrando tudo o que a Amazônia tem de melhor. Olho para o teto e me sinto ao mesmo tempo acolhida e inspirada pela cúpula futurista, uma de três, esticada aqui no meio de campos de soja e milho. Ao lado há bastante verde um SAF, um Sistema Agroflorestal, bem produtivo. Essas cúpulas, chamadas de laboratórios móveis, abrigam toda uma estrutura sofisticada. Uma serve para acolher toda a alta tecnologia, e dela tem muito. No segundo se repassa, aqui pousou uma pequena faculdade, se ensina e forma pessoas. E a terceira contém um minúsculo laboratório chocolatier, com fresquinhos 22 graus – tudo que o chocolate não gosta são temperaturas tropicais. Completamente autossustentáveis, esses laboratórios móveis fazem parte de um conceito futurista e ecológico de como manter a Amazônia de pé. Dão, ao mesmo tempo, um empurrão forte para desenvolver sua bioeconomia, diretamente aqui na base. O projeto se chama Laboratório Criativo da Amazônia do Instituto Amazônia 4.0.

Três tendas futuristas, cada um com uma função específica

Barras de chocolate e cupulate prontas para serem vendidas


Sabedoria ancestral, preservação aliada à alta tecnologia para uma nova Bioeconomia

A Amabela se junta a outra A, A como Amazônia, Amazônia 4.0. E juntas essas fazem a diferença, não só no Cupulate. Ah, Cupulate é nada mais do que um chocolate delicioso, feito não da amêndoa do cacau, Theobroma cacao, mas do seu irmão, o cupuaçu, Theobroma grandiflorum. Amabela, por sua vez, é uma organização de mulheres de Belterra que produz hortaliças e outros produtos da agricultura familiar. Elas são bem conhecidas aqui em Alter na nossa feirinha do Sábado e também da feira semanal da Ufopa em Santarém. A Amazônia 4.0 é a concretização de um sonho vanguardista e futurístico. Nascido de uma visão inovadora dos irmãos Nobre, uma família de cientistas renomadíssimos, agora faz diferença lá na base com a proposta urgente de manter a floresta Amazônica em pé. Saíram dos seus gabinetes, pensando diferente, arregaçaram as mangas para se lançar a um desafio.

Uma floresta como a Amazônia tem muito mais valor, localmente e para o mundo todo, quando é permitida fazer o que sabe fazer de melhor. Gerar umidade! Vapores que viram nuvens, os assim chamados rios voadores. Esses rios voadores fazem chover lá longe, por exemplo, no triângulo fértil da soja, abastecendo as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Cortar a floresta Amazônica influenciará diretamente no clima de toda a América do Sul. Todo o continente ficará mais quente e muito mais seco.

BR 163 – de um lado soja e milho a perder de vista, do outro lado a FLONA.

Amazônia 4.0, o número 4.0 se refere à que se chama a Quarta Revolução Industrial, já em pleno funcionamento, usa tecnologia de ponta junto com inteligência artificial que permite, por exemplo, que as máquinas aprendam quase sozinhas. Entram novos conceitos como biometria, automatização, a energia é gerida com placas solares. Com isso o produto pode ser completamente rastreado, do meio da floresta até o consumidor. E aqui é o pulo de gato, a resposta dos cientistas. Vislumbraram de juntar essa tecnologia de ponta com tudo que a Amazônia tem de mais valiosa, suas matérias primas e seus povos. Essa revolução industrial faz possível produzir em qualquer lugar, também no meio da floresta.

Alta tecnologia, leve, móvel, autossuficiente e sustentável

 

Novos modelos de negócio com a Bioeconomia

Aproveitar-se das riquezas da Amazônia significava até muito pouco tempo atrás pura exploração, deixando muito pouco para quem vive por aí. Quem lucra com suas riquezas são os atravessadores, as indústrias, quem exporta é quem transforma num produto final. Isso vale tanto para madeira quanto para amêndoas de cacau. Amazônia 4.0 propõe algo muito diferente. Se foi até aqui soja e milho ou extrativismo, entrar na floresta para levar tudo dela pra longe, sem nunca repor o estoque ou pior, simplesmente desmatá-la, daqui para frente existem alternativas. Amazônia 4.0 revisa conceitos. Mostra caminhos para mudar esse quadro. Amazônia 4.0 trabalha com a visão de que a Amazônia só ficará em pé, se os seus inúmeros povos, especialmente aqueles menos visíveis, produtores rurais, indígenas, ribeirinhos, quilombolas e claro mulheres, tiverem como ganhar o seu sustento, ganhar de maneira digna. Amazônia 4.0 vai lá na base. Lá onde estão os extrativistas, as mulheres da Amabela, as ribeirinhas e as ensina com os laboratórios criativos, por exemplo, a fazer chocolates.

Outro conceito, do momento, que se chama de Bioeconomia. Junto vem outra palavra chave - esse tal de valor agregado. Ele vem através da produção sofisticada. Quem produz um produto com alto valor agregado, consegue mudar de vida. Quem vivia até aqui de extrativismo que pouco ou nada agrega, agora tem opções. Uma delas é ajudar a manter a floresta em pé. Além disso, se torna protagonista e ainda consegue aproveitar tudo que já sabe, todas as tradições dos povos tradicionais. Vão aproveitar os mesmos para produzir produtos de alto valor agregado sendo preparados para isso com cursos e ensinamentos. Valor agregado significa, por exemplo, não exportar a madeira, mas o móvel que pode ser feito dela. Ou significa também, por exemplo, não exportar a amêndoa do cacau, mas produzir e depois vender o chocolate. Com isso parte do $$$ ficará para a comunidade que planta o cacau ou o cupuaçu. Toda a comunidade sai da dependência de uma commodity, cujo preço é feito lá fora, que sobe e desce sem controle deles.

As Amabelas defendem os seus territórios! O Tuk-tuk é extremamente sofisticado – transporta o chocolate resfriado!

 

Academia Amazônia 4.0 - sem deixar pegadas, nem rastro, só conhecimento

Outra chave para esses laboratórios móveis, um tipo de sala de aula itinerante, é a sustentabilidade e a maneira inovadora de encurtar caminhos. Feitas de tendas flexíveis, leves, facilmente instaladas, a faculdade 4.0 faz questão de não deixar nem pegadas, nem rastro quando vai embora, brindando o próximo lugar lá longe esquecido no meio da floresta ou da soja. Batizada de Academia Amazônia 4.0, forma agentes capazes de transformar não só o seu próprio ambiente, mas também alçar vôos mais longe. A Academia Amazônia 4.0 tem o objetivo de ensinar como as pessoas podem transformar insumos amazônicos em produtos com altíssimo valor agregado. Alavanca essa bioindústria com métodos e tecnologias avançadas e potentes, que permitem que os povos locais, eles mesmos, criem alternativas para não precisarem mais desmatar e plantar soja.

A cereja do bolo é o intuito claro de valorizar conhecimentos ancestrais e tradicionais que se juntam e aproveitam de produções automatizadas e computadorizadas, já que essa tecnologia não precisa de mão de obra especializada. Empreender com produtos não madeireiros, da floresta Amazônia, promete. Impacta, e mostra aos alunos e alunas que são capazes. Podem mudar, eles/elas mesmos/as, agregar valor a tudo que querem produzir e vender. Recebem ensinamentos sobre o funcionamento de uma produção, da lógica de  mercado e como funcionam todos os elos necessários de um produto até ele chegar ao consumidor final. Descobrem as potencialidades da cadeia de valor e por fim são capazes de inovar eles mesmos. Criam por exemplo novos sabores de chocolate. No último curso na comunidade Surucuá, era um chocolate que levava aroma de Casca Preciosa, na composição que foi um sucesso.

Máquinas computorizadas facilitam muitas etapas como a torra do cacau


Cacau, chocolate e cupulate, um pouco de história

Descobertas recentes levam a acreditar que o cacaueiro, Theobroma cacao, parente próximo do cupuaçu, seja brasileiro, originário das bacias dos rios Orenoco e Amazonas, de onde se espalhou pela América Central e Sul. O cacaueiro é cultivado desde o século XVII no Brasil. Quem lê Inglês de Souza, escritor de Óbidos, Pará, sabe que no Baixo Amazonas já se produzia muito cacau. Hoje em dia a Amazônia, especialmente o estado do Pará, recuperou produção, ultrapassou a Bahia,já é o maior produtor nacional de cacau. Em Tomé-Açu e na Transamazônica, por exemplo, em Medicilândia, cultiva-se cacau de excelente qualidade que ganha prêmios lá fora. Novamente o cacau e com ele o chocolate está literalmente na boca do povo. Não só quem acompanha a atual novela Renascer, que mostra toda a revolução no plantio do cacaueiro que está acontecendo. Integrando o cacaueiro, que cresce no sub-bosque e aprecia a cobertura vegetal de árvores maiores, quanto mais diversas melhor, evita a tão temida vassoura de bruxa, um fungo mortal. Além disso, coleta-se sistematicamente cacau nativo e selvagem nos rios amazônicos, famoso por seus aromas surpreendentes. Seguindo uma tendência de obter chocolate com terroir. 


Dessa maneira, o cacau vira fonte de renda para muita gente. Com os preços da amêndoa do cacau a altura, a plantação de cacau sustentável beneficia toda a Amazônia, gerando emprego, renda e sustentabilidade. Conforme a Embrapa, 70% da safra de cacau daqui é cultivada em áreas degradadas principalmente por agricultores familiares em SAFs, sistemas agroflorestais. Os SAFs otimizam o uso da terra, conciliam preservação ambiental com a produção de uma grande gama de alimentos diversos. São perfeitos para restaurar florestas e recuperar áreas degradadas. Aqui desponta o cupulate, ainda não na boca do povo. Com ele se fecha outro ciclo. Aproveita-se um resíduo até agora subutilizado por aí. O cupuaçuzeiro, parente próximo do cacau, é de origem amazônica. Cresce na terra firme numa árvore baixa que alcança 10 metros de altura. O único problema que impediu sua utilização até aqui em grande escala na produção de chocolate, é que sua amêndoa, ao contrário do cacau, é coberta por uma casca bem rígida e dura.


As Amabelas produzindo para uma feira que fechará o ciclo do seu curso com muita degustação e quem sabe, já a primeira pesquisa do mercado.


Chocolataria bean-to-bar

Assim as Amabelas entraram de cabeça numa imersão de 30 dias que alterava entre aulas de gestão, informática, levantamento e percepção do mercado e claro, fazer chocolate, bean-to-bar, da amêndoa até o produto final, o balcão onde eu posso comprar todas essas gostosuras. O lugar escolhido para essa imersão se chama Corpus Christi. Os filhos dos pioneiros que chegaram à região por volta de 1982, ainda nos últimos três anos de ditadura militar, vinham de todos os lugares do Brasil, do Paraná e Maranhão. Corpus Christi, uma curiosidade, já pertencia a Santarém, depois foi incorporada a cidade de Belterra quando essa se emancipou e hoje faz parte do município de Mojui dos Campos. Quem chega pela BR 163, um eterno tapete que constantemente sobe e desce, só a autora achou que a Amazônia era plana...., pode viver duas realidades. De um lado da BR, a Flona, Floresta Nacional do Tapajós, do outro sobe e desce, milho e soja, soja e milho a perder de vista. Junto vem todos os problemas da monocultura dos pesticidas e muito mais. Selma Ferreira, agricultora e fundadora da Amabela apostou e aposta até hoje na resistência. Luta junto com muitas outras até hoje contra o desmatamento, plantando SAFs de onde tiram seu sustento. Os desafios não acabam nunca. A professora aposentada senhora Lurdinha Evaristo conta que irão se reunir para evitar, se possível, que os campos ao lado da escola grande, bela e muito bem ventilada da vila sejam plantados com mais soja. Vão tentar dissuadir o proprietário que vai arrendar a área. Todos sabem o que aconteceu com as crianças em Belterra. Todos foram parar no hospital quando pulverizaram os campos de soja ao lado da escola com agrotóxicos.

É exatamente essa realidade que o Instituto Amazonia 4.0 quer mudar, com os seus laboratórios criativos, empreendedorismo, inovação e tecnologia, essa tal de bioeconomia. Quem sabe, logo todos nós vamos poder degustar a nossa barrinha de cupulate, produzida lá em um dos interiores remotos, transportados nos tuk-tuk com refrigeração, lindamente embalado. A verdadeira chocolataria bean-to-bar – produzindo desde a amêndoa até o chocolate final pelas mesmas pessoas, trazendo consigo muito mais do que um prazer gustativo.

Mais informações:

https://amazonia4.org/

Amabela https://o-boto.com/blog/amabela-a-historia-de-75-agricultoras-de-belterra-contra-o-veneno-da-soja

 








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