O BOTO - Alter do Chão
Você procura por
  • em Publicações
  • em Grupos
  • em Usuários
loading
VOLTAR

Yaamo – espaço etno-cultural e aldeia de coração

Dois Yaamo, espíritos da floresta, iniciando a sua apresentação
Susan Gerber-Barata
mar. 19 - 14 min de leitura
000

O novo espaço etno-cultural Yaamo, idealizado por Isanelson Wai wai em conjunto com Simone Sousa e Jarliane Silva, em parceria com a agência de turismo e transporte Cuicuera do Deco Lobato e animado por muitos parentes da etnia Wai wai, foi pensado como lugar de encontro e acolhimento de culturas indígenas. Fica localizado no coração – ainda – quase intocado de Alter do Chão, na saída para Pindobal. Nesses primeiros apresentações o espaço Yaamo está propondo organizar encontros entre turistas e a etnia Wai wai que mostram sua cultura, culinária e dança. O ponto alto é a visita dos Yaamo, espíritos da floresta, seres sagrados, embaixadores de outros sabores e mundos, os mesmos que também dão o nome ao lugar. Os visitantes não só assistem a sua apresentação, mas também podem receber sua benção. Depois será servido uma pequena amostra da culinária indígena de raiz.

Os dois Yaamo vindo para se apresentar

Na conversa com os idealizadores Isanelson Wai wai, a santarena Simone Sousa e a alterana Jarliane Silva e seu esposo Deco Lobato, donos da Cuiquera e grande incentivador, surgem muitas revelações.

Simone Souza e Isanelson Wai wai dando os últimos toques no evento da noite

Jarliane Silva e Isanelson Wai wai, o último já devidamente preparado para dançar

Temos o privilégio de assistir a um resgate importante e vivo de uma cultura verdadeiramente indígena, quase perdida, a uma autoafirmação poderosa dos povos originários. Além do que o espaço será uma solução criativa e espirituosa, permitindo que todos os envolvidos possam, enfim, ganhar o próprio sustento com dignidade. E ao mesmo tempo dar a possibilidade de conviver por poucas horas com uma cultura verdadeiramente indígena. Proporciona uma troca intercultural com os povos originários que falam sua própria língua, instiga a reflexão, especialmente quando lança luz sobre a recente história dos mesmos povos, nem sempre bonita, e sua hábil e incansável capacidade, vontade e de se assimilar e inserir na atualidade do país, sem nunca perder as raízes. 

O espaço Yaamo por fora e por dentro

O espaço Yaamo, desejado há tempo por Isanelson Wai wai, o que ele na verdade mesmo queria, era levar os turistas para visitar sua aldeia. Assim Alter agora se tornou um tipo de aldeia do seu coração. Ou como ele explica:

– “Só uma aldeia com casa grande, assim ele chama a maloca majestosa, tem liderança. Nela se dança as danças tradicionais e se festeja asfestas que surgem ao longo do ano que podem durar dias ou semanas.”

Econta que na mitologia dos Wai wai existem três tipos de Yaamo, todos com conexões espirituais distintas, todos com o poder da cura. Conta visivelmente emocionado como os Yaamo foram banidos das aldeias Wai wai pelos pastores evangélicos. Demonizados, queimaram suas vestes de palha de buriti e proibiramsuas apreciações. Graças ao resgate das quatro pessoas que idealizaram o espaço, podemos compartilhar hoje e agora sua presença novamente. 

Isanelson Wai wai desce a veste do primeiro Yaamo, pendurado no centro da maloca.

Dessa maneira, Isanelson desde 2014 muito bem estabelecido em Santarém, trilha, por assim dizer, o caminho inverso. Já que sua aldeia fica muito longe mesmo por padrões amazônicos, a saudade trouxe parentes e mais parentes para cidade grande. Muitos deles acompanhando entes queridos que ingressaram também na faculdade, a universidade federal UFOPA. A mesma que ele procurou em busca de conhecimento. Trazem consigo sua comida, sua cultura e sua arte e se deparam não só com o choque cultural, mas também com muita saudade.

As duas idealizadoras mulher do espaço Yaamo, Jarliane Silva e Simone Sousa, amigas de longa data que conheciam lá na faculdade, as duas são professoras graduadas em letras. O que as une é a procura de outra maneira de interagir com o ser humano fora da sala de aula. Agora vão guiar turistas num intercambio intercultural. De uma amizade de quase 10 anos nasceu o atual projeto que abraça tanto os povos originários e sua cultura quanto a ecologia e sustentabilidade que para eles andam de mãos dadas. E isso parece mesmo o caminho, pragmático, seguro de si e das suas raízes mesmo que Jarliane até certo ponto lamenta:

- “Nunca consegui descobrir as minhas raízes indígenas. A minha origem é tão misturada que a origem disso se perdeu no caminho. A única coisa que sei que minha avó portuguesa e o avô indígena, mas ele nunca mencionou sua etnia.” –

Simone por sua vez se mantém discretamente nos bastidores. Graças a ela que ensinou Isanelson português e segurou firmemente cada barra junto a muitos parentes dele, podemos hoje apreciar o resgate e a autoafirmação de uma cultura complexa, indígena que ainda não desvendou todo o seu mistério. 

Os preparos para a apresentação


Distâncias e obstáculos para chegar aos Wai wai

Para chegar à aldeia principal dos Wai wai saindo de Santarém, pega-se o barco grande até Oriximiná. De lá se segue mais 5 horas de barco até Cachoeira Porteira de onde a verdadeira aventura começa. De barquinhos de rabeta ou canoa saiu-se, claro sempre com muita bagagem, além do combustível, às 10 h da manhã, pernoite no meio do caminho para chegar ao outro dia por volta das 19h na aldeia principal. Uma viagem cheia de obstáculos. No caminho há inúmeras cachoeiras a subir, transportar a bagagem e rancho nas costas, puxar a canoa. Assim não para todo mundo. Além de a viagem ser caríssima pelo alto custo do combustível, os mantimentos etc.. Privilegiados chegam lá, sempre com autorização da Funai, de avião pequeno num voo que dura 1 hora 45 minutos. Hoje Isanelson só volta esporadicamente para sua aldeia, sempre que o chamam, ele faz parte do grupo de consultores da sua etnia.

Pinturas corporais e claro – um ou outro selfie

A estória do Isanelson, nascido e criado na aldeia Mapuera nas margens do rio com o mesmo nome, afluente do rio Trombetas, Pará, nos resuma uma das muitas estórias da história recente dos povos originários do Brasil. Idsanelson, de personalidade forte e cativa, compartilha um pouco o que sentiu na própria pele no início da sua jornada no nosso mundo. Conta que comprou um computador sem saber o que fazer com ele, nem onde ligar. Na sua aldeia ainda não tinham chegado essas modernidades. Tinha, enfim, não é pouca coisa, ingressado na ciência da computação da universidade federal de Santarém. Tinha que aprender o seu, hoje excelente Português, já adulto. Mas naquele tempo o seu domínio desse idioma ainda não era suficiente para poder acompanhar as aulas. Trancou a faculdade exatamente por dificuldades com o idioma. O que não o impedia de aprender tudo sobre computadores e depois celulares. Mostra o pouco preparo da instituição que se via de repente com demandas até lá desconhecidas como integrar povos nativos, todos falantes de idiomas próprios, quilombolas e muitos estudantes da escola pública, pouco acostumada ao meio acadêmico. A universidade oferece um tipo de ciclo básico para alunos nessa situação, mas infelizmente com pouca ênfase na língua oficial do Brasil.

Uma vez dominado o choque cultural, conquistou tudo com muita garra, apoiado por amigos novos que fez na mesma universidade, entre eles as duas mulheres que hoje tocam junto com ele o espaço. A ciência da computação é hoje seu ganho pão. Só um detalhe – o convite discreto para visitar o espaço Yaamo, impresso em papel reciclado, vem com QR-Code, para ninguém se perder no caminho!

Em algum lugar nesse caminho Isanelson deve se ter deparado com os Yaamo. Fala-se que eles ouçam muitas vozes, exteriores e as interiores. Enfim, foram os Yaamo que o conduziram até aqui, nesse espaço mítico. 

Prontos para se apresentar


A história dos povos hoje chamados de Wai wai

O território, demarcado, onde vivem hoje várias etnias indígenas, entre eles os hoje chamados de Wai wai, se estende além das fronteiras do Brasil. Historicamente, a etnia ocupou regiões das Guianas, do Amazonas e do Pará, hoje a maior porção populacional concentra-se na confluência desses dois Estados brasileiros, no Médio Amazonas, exatamente nos rios Jatapu e Nhamundá (AM) e Mapuera (PA). O nome Wai wai identificou várias etnias que falam línguas da família linguística Karib ou Carib. Usam entre eles o Wai wai como língua franca. Dessa maneira, comerciantes, pesquisadores e, principalmente, missionários passaram a chamar todos aqueles que utilizavam essa língua franca de Wai wai.

Foram exatamente esses missionários que causaram por volta de 1940 uma grande ruptura e reviravolta na região. O resultado? Desde meados dos anos 1950 a maioria dos Wai wai se considera cristã evangélica. Parece que quase todas as famílias possuem a Bíblia traduzida na língua deles, e as maiores aldeias possuem igrejas que realizam diversas atividades por semana, lideradas por pastores evangélicos nativos.

Membros da “Unevangelized Fields Mission” (UFM), missionários evangélicos norte-americanos, ligados a Igreja Batista, fundaram a “Missão Evangélica da Amazônia” (MEVA). Os atores principais eram os irmãos Neill, Rader e Robert Hawkins, que pertenciam a uma família protestante de Dallas, Texas, estado que faz parte do chamado “Bible Belt” (cinturão da bíblia). Uma região conservadora no Sul dos Estados Unidos onde predominam igrejas orientadas pelo fundamentalismo. O pai dos irmãos Hawkins, reverendo William E. Hawkins, era considerado um “exemplo vivo dos padrões bíblicos tradicionais” que valorizava as doutrinas do pecado e da salvação, e sua mãe uma mulher piedosa que treinará os filhos desde pequenos para a obra missionária fora do país. Sua igreja evangélica segue a ética protestante que é considerada superior, por conduzir, através do trabalho, ao progresso e à riqueza. Nos olhos dela a ética indígena e nativa é aliada à indolência, ao atraso e à pobreza.

Quando missionários americanos catequizaram a etnia, conseguiram atrair um grande contingente indígena para as imediações da sua base na Guiana e mais tarde também no Brasil. Bem preparados não só aprenderam o idioma local, introduziram a versão escrita da língua Wai wai, tudo com o fim de ser capaz de traduzir a bíblia nesse idioma. Para poder ser fiel à palavra, precisavam também traduzir e introduzir conceitos completamente alheios aos Wai wai. Na cosmologia dos povos nativos não existia nada equivalente a um Deus único, criador de todas as coisas, menos ainda a existência do seu desafeto, o diabo, personificação do mal. Interferindo dessa maneira, repetiam o que os colonizadores, especialmente os Jesuítas sempre faziam, lhes impondo valores e regras, supostamente salvando suas almas.

Antes da chegada das missões evangelizantes as etnias viviam como nômades, moviam suas aldeias a cada 4 ou 5 anos por motivos variados. Uma das primeiras estratégicas “civilizadoras” dos irmãos Howkins visou a produção de uma ética do trabalho entre os Wai wai. Podiam ganhar seu próprio dinheiro prestando serviços diversos aos missionários. Antes da chegada da equipe dos Hawkins disseminou uma doença infecciosa entre os indígenas. Preparados os missionários trataram esses males com medicamentos e injeções de medicina alopática. 



Por outro lado....

O outro lado da moeda? Ao contrário de grupos ameríndios que ao longo dos anos mostraram uma relação inconstante com a religião cristã, alternando períodos de empenho religioso com períodos de renegação, os Wai wai apresentam há quase 80 anos grande estabilidade em sua trajetória cristã, permanecendo firme na sua crença evangélica desde meados dos anos 1950. Assumiram logo, logo, já nos anos 1960 a liderança de sua própria igreja, empreendendo, além disso, uma série de viagens missionárias em direção a outros grupos indígenas. Nesse processo deixaram pra trás muita da sua cultura e crenças. Os Yaamo, por exemplo, foram proibidos. Os missionários queimaram suas vestes. Cultura e crença que esse grupo agora de alguma maneira recupera.

Na cosmologia indígena os Yaamo devem se encaixar nos mitos de seres poderosos e mítico que existiam muito antes dos seres humanos. Podem ter corpo ou não, alguns aparecem em forma humana, outros de animais e na terra são encontrados em forma de espíritos da floresta, princípios vitais de todos os seres em nossa volta. O sol, a lua e as águas também são seres vivos em níveis mais elevados. Yaamo, espíritos da floresta entram em ação quando se quebra de alguma maneira a ordem do mundo. Obrigam os seres humanos a dialogar com esses seres sobrenaturais para procurar uma solução e cura para essa ruptura.

Antigamente o xamã era encarregado dessa conversa entre os mundos naturais e sobrenaturais. Ele era capaz de restabelecer o equilíbrio num ritual de cura. Hoje é o pastor evangélico que de certa maneira desempenha esse papel no nível da alma e o médico e o enfermeiro no nível do corpo. Os dois tem Deus bíblico com causa e final de todos os infortúnios.

 

No espaço Yaamo todos nós temos agora a oportunidade única de encontrar cada um de nós o seu próprio Yaamo, aprendendo, degustando, curtindo uma cultura genuína, indígena e originária.

 

Fontes:

https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-128679/o-cristianismo-evangelico-entre-os-waiwai--alteridade-e-transformacoes-entre-as-decadas-de-1950-e-1980

 

https://amazoniareal.com.br/os-wai-wai-e-suas-conexoes-com-o-evangelismo-parte-1-a-cerimonia/

 

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/WWD00028.pdf

 





























Denunciar publicação
    000

    Indicados para você