Na vida alterana a Graúna, protagonista e dançarina cujo apelido nomeia o filme Graúna, é uma Borari, Rayla Borari. O filme, idealizado pela Mestra Marcele Santos, Mestra de Cultura Popular, foi realizado e apoiado pelo Centro Cultural Banzeiro, recebeu financiamento da Funarte e acompanha Garúna na busca por sua espiritualidade e ancestralidade. Lançado oficialmente no dia 22 de junho 2022, o filme também pode ser lido como metáfora do universo do carimbo, estilo musical tão alegre e tradicional do Pará, da cultura popular como toda, cujas raízes complexas se fincam tanto na herança e espiritualidade indígena quanto na ancestralidade africana, duas matrizes que o caboclo local transformou numa cultura genuína, pura, só dele. Uma cultura extremamente democrática, de todos e para todos. Não só no filme a idealizadora Marcele Santos nos mostra o lado envolvente, educativo e sempre incluso da cultura popular, tornando a mesma popular no melhor sentido. O link para o filme e as músicas, todas autorais, se encontram no fim do texto.
Rayla Borari junta com sua mestra Marcele Santos assistindo Graúna, relembrando as filmagens
Rayla Borari, moradora da vila Alter do Chão, tem só 15 anos. Ainda cursando o ensino médio, já está traçando o próprio futuro. Quer ser Mestra de dança, da Cultura Popular, igual a Marcele. Rayla frequenta o Centro da Cultura Popular Banzeiro desce seus 7 anos de idade. Primeiro foi discípula do mestre Leopardo, Cláudio Ferreira, que ensina capoeira e também é Mestre de Carimbo. Depois trocou e entrou para o Banzeiro de Saias da Mestra Marcele. Fala, sublinhando das palavras com gestos formosos:
“Na filmagem, incorporando todas essas personagens, senti uma grande energia, mas também uma responsabilidade gigante. Foi só uma semana filmando, mas para mim parece que foi um ano inteiro! - Encontrei na dança o meu chamado.”
Filmando as cenas da cabocla Jurema, entidade indígena que Graúna encontra no seu caminho encantado, buscando ancestralidade, respeito e referências - foto Gederson Oliveira
“Quando a divindade da Cabocla Jurema veio a mim, foi lá onde o filme começou a tomar corpo“
diz Marcele Santos, psicóloga de formação, que veio de Belém, mas mora há quase 20 anos em Alter onde hoje desenvolve seu trabalho educativo no campo da Cultura Popular. Enfatiza que o filme, todo concebido e rodado durante a pandemia - “foi uma superluta” – claro, é resultado de um encontro feliz de um grupo bem enxuto de pessoas, na maioria mulheres poderosas, cada uma muito especial. Participaram na elaboração a diretora Tainá Aragão e a produtora Clara Vignoli, as duas atualmente não moram mais em Alter do Chão. A direção de Fotografia é por conta do João Albuquerque, Santareno. As músicas, todas autorais, foram escritas e tocadas especialmente para o filme, cantadas e interpretadas pelos próprios atores e a idealizadora. Marcele canta a música da sua autoria sobre a cabocla Jurema à capela, Claudio Ferreiro, mestre de Capoeira e Carimbó dá corpo e voz aos tambores ancestrais e Roberto Costa termina com aquele carimbó. Todas as músicas já disponíveis em nível profissional nas plataformas. Link no final do texto. Marcele não só elaborou junto com a Tainá e a Clara no roteiro, mas também é responsável por todas as coreografias, pelo figurino e maquiagem. São caracterizações cheias de símbolos que fazem Rayla incorporar as ancestralidades na forma de personagens bem diversos e com energias e simbolismos bem distintos. Encontros que se juntam, mesclam para afunilar dando vida ao carimbó, música e dança local cuja ancestralidade o filme resgata.
Oxum emerge em frente à Ilha do Amor, símbolo de Alter do Chão. Seus elementos são as águas doces. Foto Gederson Oliveira
Graúna encontra no seu caminho uma segunda entidade ancestral, essa de matriz africana. Emergindo das águas fartas do Tapajós, incorpora Oxum, orixá e rainha da água doce, dos rios e cachoeiras. Segunda esposa de Xangô, mulher graciosa, elegante e não sem vaidade, representa a sabedoria e o poder feminino. O sincretismo religioso brasileiro incorporou essa entidade entre as santas católicas, a transformando em Nossa Senhora da Conceição.
Marcele lança o seu olhar atento sobre sua criação, o filme, enfim pronto.
Sincretismos e Inclusão são as palavras chaves que permeiam todo o trabalho da Mestra Marcele. Longe do carimbo infeliz de “folclore” ela mostra toda a força verdadeira da cultura popular, tradicionalmente repassado oralmente, ainda com poucos registros “oficiais”. Resgata a mesma, junto com o seu time e seu trabalho. Aposta naquela cultura popular que bebe das mais variadas fontes, todas profundamente entrelaçadas e mescladas em todo o Brasil e aqui no Oeste do Pará se manifesta forte no carimbó. O carimbó, vale lembrar, desde 2015 Património Imortal e Cultural do Estado do Pará, é uma música e dança de origem mestiça, com muitos sotaques, tanto com influências indígena, negra e cabocla. Tocada e performada não só na costa do Atlântico do Pará, no Salgado, e no Marajó, tem suas vertentes no Baixo Amazonas entre Santarém, Óbidos e Alenquer, onde se incluem os poderosos curimbós, os tambores. Como o seu esposo Cláudio Ferreira diz
“Cultura atende todos, todas as idades, e exige cada vez mais respeito pelas raízes, o resgate de tudo que é o povo, todos aqueles que fazem dela, convivem com ela.”
Parte do grupo que trabalhou no filme - Sabrina Costa, responsável pela tradução em libras, Rayla Borari, a protagonista e dançarina e Cláudio Ferreira, mestre de capoeira e carimbó.
Tanto Marcele Santos quanto o seu esposo Claudio Ferreiro veem na Cultura Popular uma, sua ferramenta, ferramenta de trabalho e enfatizam que a Cultura Popular não só cativa, mas tem um lado forte educativo. Aprendendo uma dança, uma coreografia, idade não importa, a pessoa se socializa, desenvolve fôlego além de ter muita disciplina. Ao longo do seu percurso muda não só seu olhar sobre o próprio corpo e o espaço que preenche, mas a pessoa é levada, se exercitando, a mais autoestima e autoconhecimento. Quando uma pessoa percebe que sua cultura se nutre das mais variadas matrizes, percebe como o seu horizonte se alarga. Ela descobre possibilidades e novos caminhos que ela não teria enxergado sem passar por esse percurso.
Sabrina Costa, meia indígena Munduruku, meia Borari, estudante de pedagogia e intérprete de libras.
O som do filme está nas mãos de dois profissionais, a direção de som que cabe ao Victor Kato, desenho de som feito por Zek Picoteiro. Garantindo acessibilidade e inclusão total do filme, se recorreu ao conhecimento específico de Sabrina Costa, 23 anos, estudante de pedagogia e intérprete de libras. Metade indígena Munduruku, metade Borari, ela faz parte de uma nova geração que vive com naturalidade outro chamado. Esse de aprender e performar a linguagem dos sinais que permitem que Graúna, a Culutra Popular, o Carimbó seja acessível a todos. Acessibilidade para todos também foi o motivo porque as cenas finais, essas do carimbo no filme, foram rodadas na praça central de Alter do Chão. Lá a graúna alça vol. Chegará lá, lá bem longe!
foto Gederson Oliveira
Flagrantes do lançamento com uma canja da Rayla e a felicidade total da equipe