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Um conto de natal

Um conto de natal
Susan Gerber-Barata
dez. 21 - 12 min de leitura
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Existe na minha terra, tão distante, uma forte tradição de contos de Natal. Todos os contos giram em volta de valores e a moral da crença cristão. Os contos lembram a gente que a coisa mais difícil que existe é ter empatia, enxergar o próximo com alteridade. A palavra alteridade expressa a qualidade ou estado de enxergar o outro como diferente, sempre lembrando que é fundamental que existe uma relação de interação e dependência com esse outro, com o diferente. O eu só pode existir em contato com o outro, o diferente.

Aconteceu mais do que vinte anos atrás. Virou agora o meu conto de Natal. Se chama "o Tênis" ou "É Assim Mesmo II".

A nova amiga do curso de idiomas, uma alemã, me convidou. Será que queria companhia? Iria visitar aquela creche, onde esposas de executivos com cargos decisivos numa empresa alemã exerciam trabalhos voluntários. Era uma creche, na qual mães de classes menos favorecidas podiam deixar os seus filhos. Livres, podiam cuidar de filhos e lares de classes economicamente mais favorecidas. Logo em seguida iria visitar uma família com a qual as suas filhas tinham traçados laços fortes de amizade ou como minha amiga falou com receio e a contragosto, a tinham,  "adotado". As duas meninas da família "adotiva" ligavam quase todos os dias para as meninas dela, lá do único telefone público do bairro. Morar ao lado do único orelhão era um privilégio e ao mesmo tempo um fardo. Era o cordão umbilical que ligava o bairro ao mundo: através dele se participava involuntariamente e intimo da vida de muita gente.

Ainda tento entender os meus sentimentos. Quero agradar? Sou educada demais para recusar? É curiosidade? Turismo na favela, talvez? Tento, enfim, mostrar respeito por essa terra incompreensível. Nessa terra, o meu mundo limitado não conheço outra igual, decide o berço, o nascimento sobre as oportunidades e o status que a vida me oferecerá. É um país que reivindica para si mesmo não discriminar nem raça nem conhecer barreiras de classe. Perante a lei todos são iguais. Verdade. Mas lá, para onde vou, se aplica a lei dos mais fortes. O que ergue as barreiras é o dia-a-dia. São barreiras invisíveis, imbatíveis, intransponíveis. Separa as classes com muito mais sucesso do que qualquer lei o podia fazer. 

As pessoas são muito calorosas. Tocam-me, me abraçam. Depois, cada um cuida da sua vida, dá o seu parecer. Fecham os olhos, não só para a miséria. É assim mesmo. Cedem a injustiça social com indiferença desamparada. Não são eles que têm culpa. Não é com eles, mudar o mundo. O poder, a responsabilidade toda cabe ao o patrão ou ao pai, ao estado, ao governo, à igreja, sei lá a quem.

O caminho é curto. A estrada ainda é larga, pavimentada, embora com os habituais buracos. Há uma faixa larga de terra batida dos dois lados. Dobramos para esquerda. A ruptura é abrupta. A rua de terra é mal batida. Lavada, cavada estraçalhada por inúmeras chuvas tropicais. Um bairro em construção. Faltam referências, identidade, uma cara. Tudo é provisório, facilmente substituível. Terra de muitos e terra de ninguém. O aparelho de foto ficou para trás. -"Troca essa roupa! Não dá sopa! Te veste bem simples. Preste atenção sempre!"- Esquecido no nervosismo da partida. Terra bruta, um campo gigante, recortado em retângulos. As ruas alinhadas que nem num tabuleiro de xadrez. Muros, casas simples, cobertas por telhados de cinco. Muitas sem reboco nenhum. Uns cubículos sem janelas postas sobre o chão batido. O carro escala montes irregulares, cai em vales, tenta evitar crateras e trincheiras profundas. Mal as rodas escapam da próxima cratera.

-"Te avisei! Não joga o seu carro frontal no abismo! Trincheiras desses tem que travessar na transversal, assim, diagonal!" - Tarde demais. O carro afundou. Não arreda uma palma de mão. Mais ela acelera, mais as rodas cavam a lama. Já estamos rodeadas de crianças curiosas. Três branquelas, européias, presas no seu carro de passeio. A saída? Empurrar! Em vão. Lembro finalmente como se libera na minha terra um carro atolado na neve. Encontro na pilha, sobras de uma construção, uma pedra, uma tábua, bem ao lado das primeiras casas. Observo como a minha amiga anda na ponta dos dedos, escolha com cuidado onde colocar o sapato enquanto avalia o estrago. A sandália branca dela é novinha. Já aprendeu que o vermelho quase roxo daquela terra só sai a muito custo. Sempre fica de lembrança um desagradável resquício avermelhado. 

Conseguimos! As rodas agarram o abismo, sobem. Já no carro, mera coincidência, o meu olhar esbarra no tênis da filha. Minutos atrás, novinho em folha, exibia, um belo contraste, as borrachas laterais ingenuamente brancas se destacaram contra o tecido azul-marinho. Deve ter acontecido enquanto a gente empurrou. O pé esquerdo é encobertado com lama avermelhada. Toda a frente e os cadarços são emplastrados com lama cor de cobre, encrustradas com pequenas bolas de terra. Nos sulcos do tapete de borracha cambaleiam pedriscos e torrões de de terra acobreada.

A última curva. De repente um caminhão, bem na nossa frente, parado no meio da rua. Bloqueia a passagem. Ninguém. Pessoa nenhuma toma atitude qualquer. Agoniada, ela dá de ombros. Estaciona, já sem paciência, o seu carro bem ao lado do caminhão. Andamos os últimos cem metros a pé. A cama dobrável dá para arrastar. É um presente. A filha mais velha dorme numa cama de criança. A partir de hoje pode se esticar.

Quase todas as casas têm muros altos, portões e janelas com grades. Seguem o padrão estabelecido. Antenas de televisão improvisadas, fios se embolam. Será que são gatos? Devem ter água encanada. Advinham-se atrás dos muros uns pés de bananeiras, mamoeiros, pequenas hortas caseiras. Varais de roupa, cheias, roupa de cama recém lavada cruzam as entradas. Abaixas-te se quiseres entrar. 

Lá na frente o umbigo para o mundo, o telefone público! Bem ao lado da loja que também é bar. No balcão gritam doces e petiscos em cores e letras estridentes e nomes chamativos. Atrás uma pequena pilha de cigarros. Uma plaquinha informa que se vende o cigarro também por unidade. No fundo enfileirado uma bateria de garrafas. Olha lá! Elas surgem, que nem num toque mágico, na nossa frente. São elas, as filhas "adotivas", involuntariamente adotadas. 

Esperavam a gente. O abraço é apertado, quente e caloroso. Beijam todas nós, um atrás da outra. Seguram firmemente nossas mãos, quase não se desgrudam. São tão cheirosas! Cheiram água e muito sabão. Mais tarde a minha amiga comenta que as encontra sempre muito cheirosas. Na minha terra, nossa idéia de pobreza é sempre associada a sujeira, suor e mau cheiro.

Como são diferentes uma da outra! A mais velha é mais tímida, delicada e tem cabelo longo e moreno. Traz nos olhos escuros algo conformado, resignação. De rosto bem cortado, o corte do nariz elegante, tem a boca rosada que nem um broto, os contornos dos lábios acentuados que nem com delineador. Tem membros delicados. A camisa cor-de-rosa lhe cai bem. A saia, dois números acima do número dela, folga no quadril. Doações. As roupas já pertenciam as filhas da sua amiga, que já espigaram. No pé sandálias de dedo. 

A menina mais nova tem os traços indígenas da mãe. O rosto redondo, as maçãs do rosto salientes, o nariz achatado e largo na ponta. A boca pequena é carnuda e redonda. De corpo gorducho e estatura baixa, é cheiinha. A saia aperta na cintura. Seus olhos velados, parecem tristes, nublados. O prazer do encontro sendo ofuscado por dores e tristezas escondidas. 

O café é forte, doce, preto, excelente. Servido num copo, um copo americano, cheio de um terço só. Seguro a borda, balanço o copo de uma mão a outra, de um joelho para o outro. Não há lugar para pôr. O chão é de terra batida. Dois quartos estreitos, sem janela nenhuma, pintados em turquesa forte. Cadeiras, camas e uma mesa redonda se apertam. Liberam com certa dificuldade a passagem. Estamos sentadas em pares, acanhadas, desconfortáveis no sofá-cama, posto logo após a porta de entrada. Muito baixo, o sofá trepida a cada movimento. Evitamos uma o olhar da outra. O calor aperta. O sol torra o teto de cinco ondulado. Sorrimos. Tentamos, tensas, alimentar a conversa que não pode morrer. Preenchemos mais uma pausa com risos vagos. Na falta de palavras, recorremos a acenos forçados, um encolher de ombros, desamparo. Mãos e gestos ajudam sair de becos sem saída. Limpo mais uma vez os pequenos riozinhos irritantes de suor salgado que descem as faces, se soltam sem permissão das axilas e das dobras no joelho. 

A anfitriã não bebe café. Insistiu em preparar-nos um. Teria sido rude
recusá-lo. Admiramos a nova máquina de lavar roupa. Lava apenas com água fria, centrifuga. Por ai nenhuma máquina de lavar roupa lava com água quente. Lavam também a louça com água igualmente fria. Esfregam cada copo, cada prato com muito cuidado, individualmente, com um destes esponjas sintéticas meio amarelas, meio verdes e muito, muito detergente para depois enxuga-los com muita água corrente. Somente os chuveiros fornecem água quente. Os aquecedores elétricos se limitam a três posições: frio, morno e quente. Custam para regular. Compraram ambos, tanto a máquina de lavar roupa quanto o fogão, de segunda mão. As duas máquinas brilham de tanto polir. A próxima vez ela assará um bolo. Trouxemos aquele quilo de farinha. Um presente.

Admiramos a enorme boneca da filha. Cor rosada, tem cabelos platinados bem escovadas e unhas cuidadosamente pintadas. O gato da família acaricia nossas pernas. Esbelta, de uma beleza felina estupenda, parece um animal selvagem. A pelugem brilhosa é tigrada. As listras, cinza escuras, se camuflam sob o bege, parecem ao mesmo tempo firmemente riscadas, se distinguir nitidamente. Rola, mostra a barriga, meia brincadeira, meio espreitando. Revela que as listras se desfazem em manchas regulares. A cabeça é triangular, os olhos cor de âmbar, sempre de guarda. O traço ao redor dos olhos, desenhado a carvão, torna o seu olhar ainda mais impenetrável, reforça o seu ar predatório. 

De novo na rua, lá fora, um galo, galinhas. Da mesma beleza selvagem, se mexem igual nobres pavões. Suas penas brilham e relampejam numa rica paleta de tons perolados. O galo é escuro, quase preto. Ciscam a lama com elegância e garras afinadas. As galinhas picam com muito gosto algo do caldo lamacento cor de ferrugem da vala que sobrou da última chuva.

Antes de partir, paramos na lojinha. Minha amiga compra para cada uma das duas meninas da "sua" família um daqueles saquinhos de batatas fritas deslumbrantes. Ao redor do carro outras crianças. Acenam, desejam boa volta. Todos te beijam, abraçam. Timidamente as duas meninas olham o carro se afastando.

Primeiramente, bem após a saudação calorosa, ainda na rua, a anfitriã aponta, sem dizer uma palavra, o tênis da filha da minha amiga. Se retira atrás da casa, o sapato na mão. Reapareça, minutos depois. O tênis de novo novinha em folha, limpíssimo. Exibe, um belo contraste, as borrachas laterais ingenuamente brancas que se destacam contra o tecido azul-marinho. Sumiu qualquer vestígio da sujeira, do vermelho acobreado lamacento.

Contará, mais tarde, que o seu marido, enfim, tinha conseguido, Graças a Deus, de novo um emprego. Já era desempregado há tempo. Puxará, mais para frente, um quarto a mais e quem sabe, instalará umas janelas. É pedreiro e o novo serviço promete.

E a moral da história? A moral prometida? A moral é - em outros países, países distantes, só rainhas têm o seu sapato limpo por outros. 

 

 

 

 


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