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Racismo? Discriminação? – Minha família era miscigenada e uma coisa só!

Racismo? Discriminação? – Minha família era miscigenada e uma coisa só!
Susan Gerber-Barata
out. 2 - 13 min de leitura
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Memórias Santarenas do Professor Alfredo Santos

Texto Professor Alfredo Santos

“Nos brasileiros somos miscigenados, somos um povo com uma mistura sem igual. Coisa linda eu acho!”

Nadando contra a corrente, Professor Alfredo Santos, mestre das faixas, do desenho e da pintura, conta da sua bisavó Maria de Nazaré da Silva que não se importava nem com raça nem com cor de pele:

“Sobre esse assunto de racismo eu tenho uma experiência interessante - minha bisavó casou-se três vezes. Primeiro, aos 12 anos (!) com um Pernambucano. Ele era branco de olhos azuis, aliás, bem mais velho do que ela. Enviuvada, o seu segundo casamento era com um homem meio índio, como se dizia naqueles tempos. Separada, se juntou a um negro. Teve filhos com todos eles, no total 13 filhos. Assim, nossa família tinha gente de toda cor, brancos, pardos e negros... Nós quando crianças achavam isso normal. Nossa família era uma coisa só. Nenhum primo, tio, se achava menos ou mais.... Por isso nós nunca desenvolvemos essas idiotices raciais...sou uma pessoa privilegiada por isso.”

 

E continua lembrando-se da querida Bisavó da qual era companheiro quando era criança: O nome de minha bisavó era Maria de Nazaré da Silva. Ela era miudinha, baixinha, mas brava.... Tinha pavio curto, curtinho mesmo! Ela me contou muitas estórias da sua vida. Nasceu lá pelas bandas do Xingu bem na virada do século vinte. Faleceu no ano 1984 com 84 anos. Quando ela senti que ela não iria durar mais muito, começou a se vestir só de branco. Foi todo de branco, de meia branca, vestido branco que ela foi enterrada.


Deve ter tido por volta dos 12 anos - nos interiores que ela vivia ninguém sabia a data exata do próprio nascimento - quando um belo dia o pai dela chegou de canoa com um rapaz de mais ou menos 30 anos. Gritou pela sua mãe - Cadê a Maria? Vovó estava brincando embaixo das árvores com as irmãs e foi até ele... Ele falou a ela: Olha, esse aqui é teu marido! Tu vai na canoa com ele...Vovó tinha apenas 12 anos. Esse marido dela era pernambucano, branco dos olhos azuis. Era batelão, regatão e vivia de escambo e troca, comprava e vendia entre outras coisas couros e peles de bichos silvestres que ele mesmo caçava.

Batelão era o nome dado para uma embarcação maior, projetada para movimentar cargas pesadas, comodidades secas e volumosas. Era movido a remo. Como as distâncias na Amazônia são gigantes, difíceis de vencer, e as máquinas a vapor para barcos nesses tempos ainda caríssimos e de difícil manutenção, barcos a vela e com remadores coexistiam durante muito tempo. Parece que um batelão chegava a 12 metros de comprimento e normalmente não viajava sozinho. Por questões de segurança vários batelões viajavam em conjunto. Diz-se que a tripulação de um batelão normalmente era composta pelo piloto, contra-piloto, proeiro e 5 ou 6 remeiros, sendo que estes últimos localizavam-se na proa, e o piloto na popa. Atrás tinha uma cobertura de palha, a mercadoria amontoada na frente. A maior das canoas serviria de guarda e guia, levando na popa uma bandeira.

Até hoje as distâncias na Amazônia são gigantes e os rios as ruas. Naqueles tempos uma viagem entre Belém e Manaus levava de 60 a 90 dias o que deixou Maria de Nazaré da Silva a sós com a casa em Brasília Legal e os primeiros três filhos, o marido longe. Todos os filhos eram brancos, olho castanho claro, tipo europeu. Contavam-lhe, um belo dia, que tinha enviuvada. O seu marido foi morto por um pau que caiu sobre ele no meio do mato. Nunca mais o vi nem o corpo dele. Enterravam o lá mesmo, longe, bem longe.

Vivia uma vida de muitos provões, algum lugar na beira do Rio Xingu, até se casar novamente. O escolhido era metade indígena. Com ele teve mais 4 ou 5 de um total de 13 filhos. Foi quando ficaram sabendo da chegada de uma grande companhia na região, a companhia Henry Ford. Estava alistando pessoas para trabalhar na manufatura da borracha. Rumaram, ela é a família para Santarém, onde a firma dava condução para quem queria se alistar. Dito e feio desceram o Tapajós rumo a Fordlândia que crescia a galope.

 

Lá no meio do nada o Norte-americano Henry Ford, pioneiro da industrialização e dono da Ford Motor Compagny, fábrica de automóveis, fundou em 1928 nas margens do rio Tapajós Fordlândia. Henry Ford, pioneiro e visionário conseguiu aumentar a produtividade do operário, incluindo a verticalização, automatização e mecanização da produção, levando ela a outro patamar de uma produção em massa, padronizada, fracassou com suas ideias na Amazônia.

Sua empresa necessitava de muita borracha, matéria prima para pneus. O alto custo da importação do látex da Ásia o levou a vislumbrar um grande investimento na Amazônia, inclusive de uma cidade modelo a estilo americano no meio da selva. Visava criar uma comunidade autossuficiente para abrigar toda a infra-estrutura necessária do plantio até o processo de beneficiamento da seiva da planta junto a uma gigante plantação extensiva da seringueira Hevea brasilienses, árvore cuja seiva se transforma em borracha. Ironia pura já que no ano 1876 a sementes da seringueira tinham sido contrabandeadas daqui de Santarém para Inglaterra e de lá para Malásia.

Mas vamos ver o que o professor Alfredo conta sobre a chegada da dona Maria a Fordlândia: A minha bisavó não sabia da data de seu nascimento, ela se juntou com seu primeiro marido aos 12 anos, (era normal naquele tempo) mas não possuía nenhum documento, e foi assim uma boa parte de sua vida. Até que precisou deles para ingressar em Fordlândia, conquistar carteira assinada. Contava que na hora perguntaram seu nome completo ela disse que era somente Maria. Como seu marido era Pedro Silva então ela foi registrada como Maria Silva. Perspicaz falou para o funcionário que fazia o registro que achava o nome Nazaré muito bonito. Atendendo ao pedido ele colocou na ficha MARIA DE NAZARE DA SILVA. Ganharam então ela e todos seus filhos Nazaré em seus nomes.

Mais tarde, já adultos, ficaram conhecidos como os Nazaré. Lembro como os colegas de trabalho do meu tio passavam na madrugada e gritavam por ele. HEI NAZARÉ, TE ACORDA! eu achava engraçado,  e caia na gargalhada.

 

Meu bisavô, o segundo marido dela, metade indígena, tornou-se baladeiro e tinha de se enfiar na plantação de seringueira e lá dentro ficava por semanas. Já ela, foi convocada para a limpeza de ruas, jardinagem. A minha bisavó foi alfabetizada lá dentro, já adulta. O sistema estabelecido do Henry Ford era rígido e regulado. Todos os filhos tinham que frequentar a escola. De manhã tinha escola, à tarde eram os cursos profissionalizantes. Tinha carpintaria, móveis, embarcações, mas também música. Era por exemplo extremamente proibido meninos ficarem vagando pelas ruas. Os filhos de menor idade tinham de estudar pela manhã e ajudar os pais à tarde; isso para meninos. As meninas estudavam e a tarde tinham de participar das aulas de croché, de aprendizado das tarefas do lar, higiene entre outras.

A vinda para Fordlândia foi uma ótima mudança na vida de minha bisavó, pois ela tinha tido uma vida miserável até então. Ela estava entrando em um mundo novo e tinha um ganho... Veio conhecer além de água encanada e luz elétrica as maravilhas de uma máquina de costura. Minha mãe nasceu em Fordlândia, foi dada pela minha avó a sua mãe que criou como se fosse filha e por isso tinha seus tios como irmãos. Quando criança ela não teve uma vida fácil mesmo morando em Fordlândia. Estudava na escola regular e frequentava as aulas obrigatórias de aprendizagem. Cedo se destacou nas aulas de corte e costura e mesmo com 12 anos ela já era auxiliar da mestra. Também tornou-se exímia aluna de croché, e com pouca idade já produzia peças grandes. Logo tornou-se líder e com 15 anos já ensinava os menores.

Meu tio Raimundo foi destacado para a carpintaria e junto com um tio dele irmão de minha bisavó foram escolhidos para fabricar cascos de embarcações

O filho mais novo Ivair foi destacado para o setor de carga no porto, como era um pretinho franzino mas bastante astuto o colocaram para ser tripulante de um avião Catalina que trazia mercadorias de Belém. O comandante chamado de Muniz falou para minha avó que se ela deixasse, ele o levaria para Belém e pagava seus estudos. Ela aceitou e ele foi para a capital morar na casa do Muniz que o colocou em um curso de mecânica . Com uns anos depois ele devido ao curso entrou na Vasp, companhia aérea de São Paulo que estava começando a operar no norte do Brasil.

Minha vó Lucimar tornou-se professora em Fordlândia, recusou proposta de casamento de um americano que queria levar ela pros EUA e casou depois com um sapateiro e se encheu de filhos...

Outros filhos de minha bisavó sumiram no mundo em busca de novos rumos e nunca mais se soube deles. Vó Maria morreu lamentando que nunca mais fosse vê-los.

 

Mas nem tudo eram flores. A rigidez americana que trazia tudo de fora, controlava até o cardápio dos operários levou a revolta, deve ter tido mais do que uma, da farinha ou revolta de quebra-panelas. Desacostumados com regras que pouco sentido faziam para os trabalhadores, sirenes, relógios de ponto e de comportamento, culminaram na alimentação tipicamente norte-americana. Queriam comer farinha e não hambúrgeres. Em 1930 se revoltaram contra a gerência que tinha que se esconder na selva e precisavam ser resgatados pelo exército brasileiro. Resultaram num acordo sobre a comida mais regional.

Em casa a dona Maria também sofreu. Meu avô ficava semanas na floresta cortando seringa. Quando voltava, festejava. Comprava bebida que entrava ilegalmente e às vezes quando aparecia em casa, chegava alterado e sem controle. Ela contou que certa vez ele porre, quis bater nela, dizendo que na vila todos diziam que ela já tinha outro homem. Homem naquele tempo nasceu machista de velho. Brava come era, miudinha, deve ter tido 1 metro 45 de altura, ela se defendeu. Pegou o candeeiro aceso e bateu na sua cabeça. O querosene vazou ..... e os dois foram parar na administração. Lá não podia ter confusão. A firma era rígida e demitiu os dois.

A solução foi voltar para Santarém. Mas ela veio sozinha com quatro filhos adolescentes. Logo eles ganharam um terreno e cada filho um emprego na prefeitura. Santarém daquele tempo ainda tinha ruas de terra, só mato, e sem água encanada e eletricidade. Outros filhos dela foram embora trabalhar na construção da Maria Mamoré. Ela morava numa casa de palha, jogava cinzas no chão de terra batida e o fogão era a gás. Santarém não tinha porto. Os navios grandes aportavam lá longe e todo o transporte até a beira era feito por catraia.

E o declínio alcançou também Fordlândia. De dia pra noite a cidade foi abandonada. Quem não tinha cobrado, ficou no prejuízo. Inúmeros problemas cravaram o fim de uma monocultura, técnicas agrícolas inadequadas às condições locais e muito mais. Os americanos abandonaram Fordlândia na década de 1940 depois de 18 anos lutando. Ford ainda tentou implementar outra cidade na selva em Belterra, onde aparentemente as condições para o plantio da seringa eram melhores. A partir de 1945 novas tecnologias e materiais substituíram o látex.

Minha bisavó, três maridos e treze filhos, cada um de outra cor de pele, faleceu no ano de 1984 aos 84 anos. Eu tinha 16 anos e morei com ela por 10 anos sendo seu "anjo da guarda". Antes de falecer ela me deu uma casinha onde morei só por 8 anos.

Aí já é outra história

 

Sobre as sementes contrabandeados por Henry Wickham

https://revistapesquisa.fapesp.br/as-sementes-da-discordia/

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0106200804.htm


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