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Invirataia espantando maus espíritos: a história de uma pajé do Baixo-Tapajós

Invirataia espantando maus espíritos: a história de uma pajé do Baixo-Tapajós
Vandria Borari
mai. 22 - 8 min de leitura
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Entrevista exclusiva com o pajé e antropólogo Paulo Borari, autor de "Invirataia espantando maus espíritos: a história de uma pajé do Baixo-Tapajós" – uma pesquisa sobre a pajelança como prática de cura indispensável aos povos indígenas apresentada no dia 05 de maio de 2021, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Antropologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Paulo explica que é importante falar sobre pajelança dentro da academia pois a universidade é uma instituição que ele, como indígena, pajé e pesquisador, tem a oportunidade de desconstruir pensamentos negativos sobre a cosmovisão indígena.

"Lutamos para que nossas práticas sejam respeitadas. Sabemos que a imagem de pajés desde o passado foi associada a feitiçaria, pensamento difundido por missões religiosas do passado e atualmente por outras vertentes religiosas"

Paulo é antropólogo, compositor, artista e curandeiro da região do Baixo-Tapajós. Um dos principais compositores indígenas da região do Baixo-Tapajós, é autor das músicas "Tupã reiury iké" (em nheengatu, que significa Chama nosso deus Tupã e todos os elementos –como Sol, a Lua– para se integrar e trazer força)  e "Se anama itá" (em nheengatu, que significa Chama os parentes, Borari e todos outros povos). Além disso, participou da construção coletiva do álbum “Nheengatu – Canções na Língua Amazônica Geral”, com 18 músicas na língua indígena. A coletânea é resultado de um trabalho organizado pelo Programa de Antropologia e Arqueologia da UFOPA sob coordenação do professor Dr. Florêncio Vaz Filho. A obra artística representa um processo de reorganização e valorização da identidade dos povos indígenas do Baixo-Tapajós.  Também participou do livro "Pajés, Benzedores, puxadores e parteiras: os imprescindíveis sacerdotes do povo da Amazônia", onde, como entrevistado, falou de sua vida e dom que carrega de seus antepassados. A obra é resultado de uma pesquisa organizada pelo Programa de Extensão, Patrimônio Cultural na Amazônia, sob coordenação da pesquisadora Drª Luciana Gonçalves de Carvalho e, também, do pesquisador FlorêncioVaz Filho.

Vandria Borari: Quem são os encantados?

Paulo Borari: Os encantados são os espíritos moradores e donos das cabeceiras, igarapés, matas e da parte subterrânea dos rios, o fundo. Na cosmologia indígena da região do Baixo-Tapajós, acreditamos na força dos encantados. Através dos sacaca, dos curandeiros, pajés, esses espíritos se comunicam com as outras pessoas, curam, ajudam e defendem seus locais para que sejam respeitados e mantidos. Os pajés, os sacaca, os curandeiros e curandeiras são a ponte ou canal que os encantados utilizam para fazer essa conexão com as pessoas desse mundo aqui, que estão nesse plano aqui. 

"A pajelança, os sacaca, os curandeiros são a ponte ou canal que os encantados utilizam para fazer a ligação/conexão com as pessoas desse mundo aqui,  que estão nesse plano aqui".

 

V.B: Como foi sua trajetória com a pajelança?

P.B.: É um dom que vem de nascença, que desde os primeiros anos de idade começamos a perceber, sentimos a força dos encantados, dos guias da mata, das águas e seus ensinamentos. O dom vem especialmente para curar, através de remédios da floresta, defumações, rezas e orações.  Essa função é muito importante pois atende pessoas com uma diversidade de problemas físicos, espirituais e psicológicos. Atuo na função de curandeiro, pajé –como nós indígenas falamos– há muito tempo, mais ou menos 8 anos. Estou diretamente, intensamente, nessa função. Um pajé pode atuar de diversas maneiras. Devemos sempre estar disponíveis para cuidar de alguém que nos procure precisando de ajuda. Nós não descartamos que a ciência médica tem sua importância, porém existem situações que somente o curandeiro e a curandeira, dentro da pajelança, vão conseguir perceber ou tratar, assim como irão existir problemas que somente a medicina ocidental irá resolver.

 

 


V.B.: Você apresentou o seu trabalho de conclusão de curso de antropologia na UFOPA no começo do mês. Por que escolheu esse tema?

P.V.: É muito importante falar sobre pajelança dentro da academia, pois a universidade é uma instituição que eu, como indígena, pajé e pesquisador, tenho a oportunidade de construir esse trabalho a favor da desconstrução dos pensamentos negativos sobre a pajelança. Na nossa cosmologia indígena, que os encantados e a força dos pajés sejam respeitados. A pajelança é uma prática vivida não como uma religião, mas como um dom que vem para algumas pessoas que precisam aceitar e trabalhar nessa função. Que a atuação desses sábios e sábias sejam mais percebidas, pois são indispensáveis. Lutamos para que nossas práticas sejam respeitadas. Sabemos que a imagem de pajés desde o passado foi associada a feitiçaria, pensamento difundido por missões religiosas séculos atrás e atualmente por outras vertentes religiosas.

Fiz a pesquisa com uma curandeira da região que fala sobre o seu histórico de vida. Ela conta como atuou e como vivenciou a pajelança também como parteira. Atualmente evangélica, porém em continua atividade, ainda faz remédios, orações e se alguém precisar puxar ossos e nervos desmentidos, não se nega a ajudar, pois tem convicção que sua missão é um dom dado por Deus para ajudar as pessoas.

 

V.B.: Qual a importância da pajelança para a nossa região do Baixo-Tapajós?

P.B.: A pajelança na cidade ou dentro das aldeias indígenas é indispensável. Eu moro em uma região urbana e atendo pessoas com diversos problemas, desde gripe, garganta inflamada, estômago, problemas de inflamação de mulher, inchaços, até outros tipos de problemas. Utilizo as plantas medicinais, que eu cultivo também no meu quintal. Tenho o maior respeito porque como curador tenho uma relação com as plantas. É preciso ter uma relação de respeito, pois até para se tirar uma planta para fazer um remédio ou para rezar ou benzer alguém, é preciso pedir licença daquela planta. Acreditamos que tudo tem uma mãe que protege, uma mãe que está ali junto daquele filho, daquela filha, seja planta, seja água e seja tudo o que a gente utiliza, que vem da natureza.

Imagem: Teçume empalha de babaçu. Crédito: arquivo pessoal.

 

V.B.: Você tem curadores que antecederam você da região do Baixo Tapajós como referência?

P.B.: Os pajés que trazemos na memória, dentro do movimento indígena aqui da região, são dois grandes sacaca: o pajé Merandulino, cobra grande, do rio Arapiuns, e o pajé Laurelino, da aldeia Takuara, do Rio Tapajós, que foi propulsor para o início do movimento indígena, através de sua fala e de sua autoafirmação enquanto indígena.

Dentro de minha banca de cura, eu trabalho só. Digamos que dentro da pajelança, a iniciação se dá de forma diferente, tem pessoas que se iniciam com outros pajés e existem pessoas se iniciam com a força dos encantados, com a força que vem diretamente desses espíritos, aprendemos com os espíritos e com nossos outros irmãos e principalmente os mais velhos.

Imagem: Paulo Borari ao lado do xamã Davi Kopenawa Yanomami, no Acampamento Terra Livre, 2018. Foto: acervo pessoal.

V.B.: E para você, o que representa a floresta enquanto curador?

P.B.: A floresta é a casa dos espíritos, a casa dos guias, dos encantados, dos encantados da mata. É a casa dos grandes pássaros, a casa dos animais, a casa de todos os seres que ali estão, das cobras e dos sapos. E cada um desses têm uma mãe, então, a gente sabe que é a casa dos espíritos. O xamã Davi Kopenawa, do povo Yanomami, fala que "é onde mora os Xapiri", que é como ele chama os espíritos na língua dele. Os Xapiri fazem relação com os pajé, os xamãs, e a mensagem é que a floresta deve permanecer em pé porque senão haverá um grande desequilíbrio no mundo todo –e nós sabemos que cientificamente isso é confirmado também. Então, a partir disso, a gente percebe da importância que existe no xamanismo, na pajelança, em ouvir a palavra dos xamãs para entender o significado dos espíritos da natureza, o significado da casa deles, o significado da importância que existe na preservação, no respeito. A gente respeita a casa alheia e a gente respeita da casa de todo mundo, tanto das pessoas como a dos espíritos.

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Vandria Borari  é comunicadora indígena e em seu trabalho de TCC, em direito, pesquisou sobre "autoafirmação do povo Borari, atacada pelo processo de colonização, como forma de resistência do seu povo." Atualmente escreve sobre várias temáticas que envolve cultura, território e direitos indígenas, como forma de expressar a voz indígena.


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