ou como no sítio do Valdely Kinupp vísceras de peixe, pó de carvão, restos de frutas recolhidos na feira livre e serragem recuperam terras amazônicas cheias de PANC frondosas.
Do alto da seus quase dois metros Valdely Kinupp explica, recorta e faz qualquer um provar das delícias, aqui chaya, Cnidoscolus aconitifolius, a árvore do espinafre, originário do México, no seu sítio em Manaus.
Foi a própria Amazônia que tirou a sorte grande! Valdely Kinupp, fluminense, mais conhecido como Papa dos PANC, das plantas alternativas comestíveis, se tornou professor do IFAM em Manaus! Fato que transformou o botânico e doutor em fitotécnica, criador de um herbário de referência e grande pesquisador em apreciador e conhecedor das riquezas amazônicas, além de ser proprietário de um sítio na periferia de Manaus. Uma visita ao sítio, cheio de PANC, revela um lado novo e inesperado dele. Lá Valdely Kinupp desenvolveu o sua própria e bem pragmática versão da permacultura, completamente adaptada às condições e necessidades locais.
O sítio é aberto para visita e quem vai lá recebe um convite punk! Deve repensar todas as suas práticas tradicionais de agricultura! Despretensiosa, sem carteirinha e ideologia, somente baseado nas suas PANC, termo criado por ele que descreve todas as plantas comestíveis não convencionais, ele conta da sua versão de permacultura cheia de PANC que integra tudo, bichos, plantas, gente e muito, muita reciclagem.
"As PANC são, por natureza, orgânicas e sem nenhum apetite por agrotóxicos."
Tanque enchido pelas águas de chuva com criação de pirarucu
Paisagem bem manauara num segundo lago no sítio, habitat de patos e pirarucus.
Tudo no sítio das PANC do Valdely Kinupp respira punk. Punk num bom sentido: algo muito diferente e imprevisível. O próprio Valdely Kinupp do alto dos seus quase dois metros de altura cativa com sua mistura inusitada de guru, xamã, professor pardal, intelectual e caipira, daqueles expertos, conduz o pequeno grupo de admiradores, prontos para provar qualquer mato ou verde, desculpe PANC (Planta Alimentícia Não Convencional) na sua frente no mesmo instante que o expert Valdely aponta, recorta, quebra uma folha, um galho ou uma flor, tendo tanto o apelido popular quanto o nome latim da planta na ponta da língua. Mordem o pequeno pepino com listras decorativas, sem lavar, claro, que ornamenta a o portão da entrada, e fiquem punk quando a primeira mordida revela que o interior do mesmo pepino crocante se revela vermelho sangue.
Admiram as flores do jerimum, a safra de hoje encha com facilidade um tupperware grande, e aprendem, de rasteira, que além das flores da abobora, amarelo ovo, recheadas ou não, também os brotos, as folhas e os talos da planta não fazem feio no prato. Esse tubérculo lá? A folha lembra açafrão-da-terra, e ele é o novo queridão dos antenados: Ariá, Calathea allouia, uma batatinha crocante e deliciosa.
O balde ao lodo revela, punk! que aqui não mora nenhum herbívoro. Penas de um pato que mais tarde será entregue para o freguês, já morto e depenado, como manda o costume - o sítio é produtivo e nenhum hobby ou capricho. Tudo que cresce aqui ou é criado segue dois propósitos, primeiro de fechar ciclos, segundo serve para enriquecer um dia os pratos alheios, dele próprio ou de outros, restaurantes, particulares.
Os detritos orgânicos são cobertos com uma lona, preparando uma festa dupla. Primeiro para as moscas que lá depositam seus ovos, depois para os patos que comem as larvas gordas.
Os patos estão de olho - tudo que não foi vendida na feira vira adubo - tem maneiras mais eficientes de reciclagem?
Jornada dupla ou tripla
Bichos aliás, não faltam no sítio. E todos têm sua função. As chuvas tropicais com qual o céu brinda, vão para um tanque com pirarucus, pequenos ainda, filhotes, mas bem vivos. Outros são distribuídos em vários outros lagos. Claro que todas as fossas são orgânicas. As bananeiras frondosas todo mundo já conhece. Atrás da casa moram em caixas d´água coelhos e porquinhos-da-índia que comem além de mato também restos da cozinha. E logo vem a cabra, essa na corda, especializada em plantas que os coelhos, por exemplo, não comem e também um tipo de aparadora de grama.
Todos os bichos no sítio tem sua função
E ai Valdely frustra, os mais sensíveis me perdoam, certas expectativas.
“Não sou vegetariano não, como de tudo, tudo mesmo. Adoro um porquinho-da-índia na brasa ou na panela.”
O leve recuo paira no ar quando o mesmo Valdely, a camisa rosa choque estampada com propagada das PANC, ele acabou de elogiar uma folha de jerimum (abobora), taioba ou de urtiga, fala com toda naturalidade que não é vegetariano não. Vegano? Deus me livre! Aprecia e come quase de tudo! Curte, especialmente no café de manhã, uns ovos de pato, a amarela gema mole um belo contraste contra a clara branquíssima. Franco e cativante, de bermudas e sapato fechado e faca curta em punho, sempre pronto para pisar na selva punk, não faz muita firula com sua engenhosa permacultura. Não segue nenhuma apostilha ou seita. Ele simplesmente vê possibilidades onde ninguém mais as enxerga ou nunca os enxergou. Não só nas plantas. Também nos bichos. Imagina que destina a cabra vai ter!
Quem tem o privilégio de visita-lo lá na sua mais nova empreiteira na periferia de Manaus, fica fascinado pela naturalidade com qual ele integra tudo. Fecha em volta dele todos os ciclos, sem pretensão nem propagando, mostrando, com a maior naturalidade do mundo, como tudo é entrelaçado. Vive, intenta, inventa uma permacultura amazônica no melhor sentido e com um espírito inventivo e uma naturalidade ímpar. O motor? Sua energia cativante que parece nunca acabará, sempre pronto para um novo desafio, dos gigantes por favor, do Hércules.
Floresta integrada com mato produtivo e PANC. Bem visível o terreno acidentado.
No ramal do Brasileirinho
Manaus se desdobra, Manaus sobe, Manaus desce até os bairros mais simples se tornam gradualmente mais rurais, proliferando-se, ramificando que nem um dos próprios PANC do Kinupp. Já no ramal do Brasileirinho, avistam-se inúmeros sítios, pelados campos de futebol, a terra amarela exposta, barrenta. Uns coqueiros e palmeiras na firme luta diária de sobrevivência. Que tal um retiro espiritual? Muitos sítios podem ser alugados por eventos evangélicos. E lá na frente, de repente, selva transborda, invade a rua. No portão da entrada se entrelaçam trepadeiras que mais tarde se revelam comestíveis. O verde, frondoso, prolífera, toma conta de tudo. Naco nenhum de terra barrenta, raquítica e com hepatite é visível. Chegamos. A placa multicolorida indica: Sitio PANC! Um lugar acidentado, pouquíssimos campos retos, desce em espiral até uma nascente, recuperada também, com buritis frondosíssimos, banhando os seus pés nos lagos ao lado.
“Quando eu cheguei, a terra aqui era estéril, lamacenta, castigada e desmatada.”
Valdely aponta para o barranco que logo logo receberá uma cobertura vegetal. No final do recorte percebe-se a fina camada de terra fértil e preta amazônica.
Quem diria que ele vive e se emprenha há poucos anos aqui. Cinco anos atrás o sítio não se destacava em nada dos outros na sua volta. O segredo? O que fez e faz toda a diferença, é o olho, ou melhor, a mão e os braços do dono. Só recentemente contratou um caseiro, o qual acha, falando bem baixo e meio envergonhado, muito devagar. Difícil de concorrer com o cuspe, a força e a capacidade para trabalhos braçais do próprio Valdely. Parece que nunca esqueceu a infância no sítio perto de Nova Friburgo. E já estamos invadindo a selva, uma selva bem particular. A terra é fértil que só na várzea, transborda de frutas, folhas, tubérculos e inúmeras PANC. Uma selva criada, manejada, podada pelo próprio Kinupp. Ele entregue o porquê com o mesmo empenho cativante. Compartilha tudo que ele sabe. Ergueu sobre a mesma terra barrenta, compactada dos outros sítios simplesmente uma nova e fértil camada de terra preta. Quem pisa no chão ainda mole, segurança dá um papelão, logo é avisado, piso sobre resíduos reciclados.
Tudo vira adubo, nutrindo a terra pouco fértil amazônica
Trabalho braçal
Valdely dá um fim para qualquer matéria orgânica e alguma não orgânica que aparecem, de preferência de graça, na sua frente, tudo para restaurar a fina e sensível camada de terra fértil, que acaba tão rapidamente, uma vez pelada da vegetação. A técnica é tão engenhosa quanto simples. Mas o trabalho é diário e braçal. Com chuva ou sol, nos feriados, no Natal e no ano novo ele troca mais uma dúzia de baldes “secos” (vazios) por cheios, transbordando com aparas, espinhas, escamas e cabeças de peixe. Leva, é caminho para casa, onde o nosso mestre da reciclagem as enterre no máximo de manhã no outro dia.
"Abro trincheiras longas em campos abertos onde quero melhorar a terra, ou quatro buracos em volta de plantas que não crescem como devem, e enterro, sobre uma camada verde, serragem e ou carvão outra camada de aparas de peixe. Cubro com outra camada verde e termino com mais terra, amarela, lamacenta e estéril."
O lance melhor ainda é que a terra retirada hoje para cobrir a trincheira já cheia, deixa pronta uma nova trincheira para amanhã, e por ai vai. O restante ele deixa por conta da chuva, dos bichos, dos fungos, bactérias e das temperaturas tropicais. Quem já pisou na terra um pouco mole, protegendo o tênis claro com papelão, integra qualquer papel descartado no preparo também, vê, que bem feito, o método não desenvolve nem cheiro, nem bicho e os resultados são punk, estupefatos! Devem ser toneladas de resíduos que ninguém aproveitou até o Valdely apareceu e os reintegrou em ciclos eternos. Que bem ele faz para a humanidade! No linguajar técnico de um engenheiro agrícola isso se chama de reposição de nutrientes, perdidos no instante no qual o solo foi desmatado e perdeu a sua cobertura vegetal, só é renovada pelas folhas mortas que se descompõe em matéria orgânica.
Sempre trabalhe com a natureza e não contra ela
O negócio não pára por ai não. Restos de frutas que já passaram do ponto, cascas, coroas de abacaxi, toneladas de cocos verdes vazios, lixo para pessoas normais, se integram aqui no sítio em ciclos novos, não sempre dos mais apetitosos, mas altamente atraentes, por exemplo, para os patos. Depositados em montes, cobertos com uma lona, já, já se instalam os onipresentes insetos no material orgânico, depositam seus ovos os quais por sua vez se transformem em larvas, extremamente apetitosas e gordas, prontas para serem ciscados pelos patos, o que deixa os mesmos mais felizes ainda.
"Antigamente aqui também tinha cortadeiras. Escavei os formigueiros, joguei tudo em baldes com água e fiz a festa dos patos!"
Hoje a terra e a plantação são tão equilibradas que não tem mais formigas no sítio. E os patos se deliciam nos cocos. Abertos ao meio, eles adoram aquela casquinha branca e suculenta que os clientes que bebiam as águas de coco deixaram para trás. Depois as cascas fibrosas apodrecem no pé das árvores e já se fechou outro ciclo.
Bags gigantes cheios de caroços de açaí e bacaba - todos viram, colocados em pneus reciclados, ao brotar um tipo de cobertura vegetal bem decorativa.
Quem não conhece os bags gigantes transbordando com caroços de açaí, dia após dia posto em frente das vendas? Pois é, no sítio eles se transformam em cobertura vegetal logo que brotam, enchendo pneus e outros buracos. Duram bastante e parecem uma fina camada de grama.
Xô para qualquer agrotóxico
Como as PANC por natureza não gostam nem aguentam agrotóxicos, crescem em lugares em quais nem tomate nem alface teriam vez, temos que preparar a cabeça para ideias diferentes, não exatamente novas, mas para as terras amazônicas bastante incomuns.
"Já pensou que o solo é um organismo vivo? Com necessidades e propriedades que podem ser equilibradas? Cheio de piolos de cobra, insetos, besouros, aranhas, uns bem assustadores, fungos e bactérias? Cada um tem sua função. Por isso: Nunca queima nada! Solo queimado perde todas as suas riquezas e precisa de muito tempo para se recuperar."
Grandes amigos, os piolhos de cobra, indispensáveis em cultivar a terra de manejo orgânica.
Ao tocar fogo e queimar o material orgânico, as chamas matariam todos esses seres vivos, tão ocupados em transformar todo material orgânico em compostagem. São as folhas apodrecidas, a cobertura morta que recuperam e fertilizam as terras amazônicas. Além disso, como é costume numa floresta agro, todas as plantas vivem em harmonia e preenchem vários andares, aproveitando o máximo quada metro quadrado de solo. Debaixo de árvores gigantes crescem arbustos ou árvores menores como o cupuaçu e o cacau. Os dois odeiam o sol. Na sombra delas ainda forra a taioba o chão, aproveitando o máximo cada centímetro tanto na vertical quanto na horizontal. A taioba aliás nutra não só a gente, mas os bichos de criação também.
"Controla a minha selva bem natural. Pratico capina seletiva e preservo ou poupo as plantas que protegem e nutrem a terra. O que foi cortado fica no lugar, formando cobertura morta, junto com as folhas que caiam todo dia."
Também poupa espécies de algum valor, seja medicinal ou de madeira. Usa plantas fixadores de nitrogênio no solo e adubação verde. Mas o que ele faz para plantar uma nova árvore? Muda ainda? Com certeza uma árvore PANC? No lugar da motoserra ele se livra de árvores indesejadas, por exemplo das omnipresentes embaúbas e outros árvores sem interesse, em anelá-las a casca. Isso enfraquece a árvore, permite que parasitos e bichos entram e a mesma morre, uma morte bem lenta e controlada, deixando todo seu material orgânico no lugar e nem precisa ser retirada, queimada sei lá o que, como mando o costume local. No pé dela ele planta a nova muda que ainda se aproveita um tempo da proteção da outra, menos valiosa.
Escolhas certas
Valdely é cuidadoso em escolher o que plantar, mas também gosta de uma novidade ou planta exótica. Mas recomenda sempre plantar a planta que aguenta o clima, se adapta a região. Não tenta cultivar nem tomate nem alface, os dois exóticos e somente com muito agrotóxico mantido na sobrevivência. Cultiva muita banana e mamão, jerimum e mandioca, além de todos os PANC que fazem a sua fama. Encanta os visitantes com uma variedade de ora-pro-nóbis amazônica, lado ao lado com a mineira, um cactos também. Brinca com as folhas dos dois tipos de fruta pão, bonitos e frondosos cujas folhas grudam no corpo e vestem as meninas da excursão.
Buriti com cachos frondosos. Dele usa-se tudo e as frutas dão sucos e doces de cortes fabulosos e gordurosos.
A famosa faca curvada e bem afinada recorta, pica e oferece tudo que é comestível.
Cada fim de semana leva interessado ao seu sítio.
"Organizo Pascoas punk e agora podem se inscrever no réveillon PANC!
O próprio Valdely recebe e guia as visitas com espírito missionário. No fim do tour uns dão um mergulho na piscina punk. Azul piscina, feita de pneus e mais pneus. Desses de caminhões, íntimos de muitos buracos e inúmeras Belém-Brasílias. Quem prefere, também pode nadar com os pirarucus. E a farra acaba num jantar punk, preparado pelos próprios visitantes, loucos para enfim provar e aprovar com todos os seus sentidos aguçados. Todos mesmo - as chuvas diárias já se armaram, prontas para dar um batizado amazônico em todos que curtiam essa aventura tanto quanto a gente.
No coração do sítio a nascente recuperada que virou piscina. A corda permite descansar e contemplar.
O sítio é produtivo - as penas dos patos vendidos e os talos da ora-pro-nobis aguardem ser reintegrados nos ciclos eternos.
A "biblia" dos PANCs que pode ser comprada em livrarias e pelo internet.
Quer comprar local e da estação? Vai na feirinha que acontece sempre aos sábados no terminal de Alter do Chão. No centro da vila, perto da Dona Glória tem a Horta urbana e a feira 2000 tem muitas guloseimas locais, ainda pouco PANC, mas é bom gerar mais demanda!
Quem quer saber mais:
Plantas Alimentícias Não Convencionais - PANC | Bela Gil entrevista Valdely Kinupp
https://www.youtube.com/watch?v=ntvnvlwipBc
Ervas e Plantas| PANC – Plantas Alimentícias Não Convencionais