"Quando falei que queria construir a minha casa de barro, o meu pai ficou sem palavras. Para ele, alvenaria é tudo de bom, tudo que ele queria para a casa da sua filha. - Barro? Filha, de onde você tirou essa ideia? - Na verdade tudo começou com o início da pandemia. A minha família precisava de uma alternativa de sustento e a aposta foi em galinhas. Precisamos construir um galinheiro bem grande. A única opção viável era fazer de barro. Como nossos ancestrais até pouco tempo atrás faziam. Foi lá que tomei gosto." - Fala da Késia Borari.
Késia, uma verdadeira Borai, moradora de São Pedro, aldeia Curucurui, e mãe solteira, bateu pé. Alegre, muito articulada e cuca fresca queria colocar a mão na massa para construir sua própria moradia de barro num terreno lindo, perto do igarapé. Seu desejo ancestral encontrou força e inspiração na oficina da Marlene Molina Soto cujas 9 oficinas de barro chamadas de Jornada d´barro do projeto Gaia d´barro, culminaram em juntar os dois mundos, sua Bioconstrução Holística, Permacultura Feminina, popular e comunitária, e a construção de pau-a-pique da Késia. Ela mostra a casa pela qual ela tem ideias muito claras, já parcialmente erguida - uma casa toda na técnica ancestral de pau-a-pique.
Marlene Molina Soto acompanhada da fiel cadela da Késia, dando mais uma aula, essa agora dentro da casa em construção.
Casa de barro - fresca, econômica e bem adaptada ao lugar
Aprendo uma coisa nova com ela. O interior de uma casa de barro é fresquinho! Tudo que a gente quer numa morada amazônica.....! O barro é um isolante térmico perfeito. Já tinha sentido na própria pele como um chapéu de palha presenteia a gente com uma sombra agradável, graus mais baixos do que debaixo de um telhado de zinco ou Brasilit. Pesa no caso da palha seu tempo de vida curta e que ela é altamente inflamável. Os outros materiais saiam mais baratos a longo prazo. Não duvido que uma boa pesquisa sobre impregnação da palha e camadas mais grossas da mesma pudesse resolver os dois problemas, mas o progresso fala mais alto.
Construir com barro está na moda. Conheço várias casas de intelectuais mais alternativos que são ornamentadas com uma parede de barro. Uma homenagem às tradicionais casas dos caboclos. Uma parede que dá ao barro uma função meramente decorativa. Mas alguns vão além. Conheço pessoas em Alter e redondezas, essas sim, bem alternativas, que fazem questão de construir suas próprias casas, todas em barro. Mas como Marlene ensina, o problema está nos detalhes, nas rachaduras, por exemplo.
No caso da Késia a opção para o barro foi nada romântica, foi a questão da economia e da conexão com a ancestralidade. Erguendo em barro, ela não só trabalha com recursos do lugar, mas grande parte da mão de obra é tipo puxirum, assim se chama um mutirão na Amazônia. Sua casa cresce de olhos vistos, sempre que ela, sua família e seus amigos botam a mão na massa.
O puxirum a pleno vapor. Enquanto uns peneiram o barro que contém bastante pedras - Marlene já sugere que servem para drenar a água da fossa ecológica - outros já pisam o barro. Nele, outra sugestão da Marlene, é acrescentar 1/3 de areia nele. Ela já observou que as paredes que já secaram, tendem a rachar o que a areia evita.
As jornadas da Marlene - construir com barro é com ela - mostram que aqui em Alter do Chão há um bom punhado de gente que procura viver de maneira diferente, mais simples, mais perto da natureza. Marlene coloca em prática o que poucos fazem - pesquisou, testou, aprendeu e elaborou suas próprias técnicas de construção com barro. E faz questão de passar o que sabe pra frente! Enfim, Permacultura e trabalhar com barro também precisa ser adaptado ao lugar e ao clima amazônico, que é muito diferente. Marlene usa na sua técnica de construir, por exemplo, além do barro e tela de galinheiro, outros materiais naturais e locais como goma de tapioca e fibras aquáticas. E está, sempre, extremamente pragmática - inclui nos recursos naturais que usa, por exemplo, uma pitada de cimento ou cola branca na pintura. O melhor de tudo - com os cursos dela, os puxiruns e todo o material que ela disponibiliza nas redes sociais, ela compartilha sua Bioconstrução Holística, toda sua experiência. Em vista sempre o melhor - ela garante - o seu barro não racha!
Pau-a-pique - maneira de construir universal e ancestral
Aqui dá para ver muito bem os vários tipos de madeira da construção, os pilares que sustentam e a trama de bambu e cipó que será completamente coberto por barro. Os conduítes da eletricidade também já foram incorporados.
A maneira que se chama pau-a-pique ou taipa, aplicada na casa da Késia, é ancestral, muito antiga e construções com barro se encontram em muitos lugares no mundo, na Alemanha, na África, no Peru. As técnicas são todas parecidas. No Brasil colonial se construa tudo em pau-a-pique de igrejas e casas-grandes de fazendas até casas muito simples. Para construir, se eleva uma estrutura de madeira ou no caso da Kessia de pilares de paus brutos de "madeira amarga", Canela de velho, cortado nas redondezas. Para que a casa dure, as madeiras não devem tocar o chão. São todos bem ancorados em fundamentos de concreto. Entre os pilares se preenche com uma trama de quadrados amarrados de bambu recortado e amarrado com cipó. Os espaços vazios depois são preenchidos com terra barrenta, normalmente obtida no local da construção. No caso dela, o pai nem queria peneirar muito a matéria prima, que, aliás, tinha que ser comprada. A terra perto do igarapé seria arenosa demais para virar parede. Como já apareceram pequenas rachaduras e frestas, Marlene recomendou misturar o barro com uma parte de areia, o que aumenta a elasticidade da parede. A mesma coisa acontece com a fibra aquática que aqui não foi usada. O restante depende do gosto e habilidade de cada um/a.
Como as rachaduras são muito atraentes para insetos que não faltam aqui na Amazônia! é bom não dar nenhuma chance a eles. Em certas regiões do país as rachaduras estão associadas com a terrível doença de Chagas, transmitido pelo barbeiro que ama se instalar neles. Uma razão a mais para iniciar a construção sobre uma base de pedras ou tijolos, afastando a parede de barro 50-60 cm do solo para depois rebocar e cobrir todas as frestas e rachaduras com um barro mais fino e peneirado.
Casa de barro em Belterra, erguido pelos próprios moradores
Parede de barro toda rachada pelo uso de material inadequado e não rebocado.
Aqui Marlene ensina como se aplica uma primeira camada de barro de alisamento, um tipo de reboco, sobre a parede feita de barro, igualizando, embelezando e deixando a casa mais segura e forte.
Descolonizando
Há muito pouco tempo atrás, os mais velhos como o professor Alfredo Santos, se lembra como o morar era diferente:
Quando cheguei da cidade grande, Belém, em Santarém, eu tinha uns 8 anos de idade, vindo de Belém num avião bimotor do seu Camargo, conheci outro mundo. Pousamos mais ou menos 16h e na Zona Rural, um ônibus, verde e branco, chegamos na casa da minha bisavó Maria. Ela me aguardava junto a outros parentes, todos sorrindo, contente em me conhecer. Era um terreiro de terra preta, coisa que eu nunca tinha visto. Desci do carro e recebi muitos abraços e olhares curiosos. A Rural se foi e me deixou num lugar estranho e diferente.
A casa da minha bisa era quase totalmente de palha, não tinha piso e não tinha divisórias. As palhas da cobertura eram pretas da fuligem das lamparinas. O banheiro era no quintal, o vaso sanitário sobre um buraco do qual não se via o fundo. Coisa que me dava medo.
Vovó morava com o tio Raimundo que era, apesar da idade, solteiro e com tio Flávio que fora abandonado pela esposa junto com Janice, Janete e Mário, o mais novo, um ano mais velho do que eu."
Professor Alfredo que é pintor desenhou a casa da sua bisa de memória.
Quem pesquisa um pouco a história das moradas amazônicas, recente mesmo, encontra coisas extraordinárias. Descolonizando o nosso olhar sobre as casas dos caboclos, descobrimos muita coisa emocionante. Como toda a vida do caboclo era uma vida de incertezas, a casa também deveria ter sido visto como uma coisa temporária, rapidamente erguida, rapidamente desmanchada igual à rede que se pendura e enrola no outro dia. Uns contam como desmancharam a sua casa de barro - com muito gosto - com uns chutes, porque enfim conseguiram a tão sonhada casa de alvenaria. Depois perceberam que a casa velha também tinha lá suas vantagens.
Uma maloca indígena, construída para cenário de um filme que foi filmado aqui em Alter do Chão.
Não só as malocas indígenas são de rara beleza, também casas populares foram erguidas com parcimônia, ideias bem próprias, vivência e sabedoria ancestral e mostram como é importante de respeitar não só o sol e o verde, esse nem tanto, mas também as condições climáticas do lugar, os materiais disponíveis e o que eles tem a oferecer, e claro, por exemplo as condições como subida e descido dos rios. Sobre isso dona Maria do Caxambú nos conta:
Eu morei muitos anos na praia, na praia do Caxambú. Tinha duas casas, uma casa de cima e uma de baixo, as duas eu mesmo erguei.
No lugar desse tal de ar-condicionado
E como numa casa popular ninguém tem condições de colocar um ar condicionado, empreendem-se outros recursos. Palha e barro são isolantes térmicas perfeitas. Deixam a casa bem fresquinha. Além disso, o caboclo desenvolveu outros recursos. Colocou sua casa, essa da foto já de madeira, outro material disponível em abundância, um metro do chão, sob um tipo de palafitas. Falam que o vento que passa por baixo "esfria", perdão, refresca toda a casa, a deixa bem agradável.
A casa de um pescador em Óbidos que aposta no vento que "resfria" a casa passando por baixo dela. Observa-se também a altura da mesma.
O mesmo recurso, aliás, pode ser visto nos porões dos casarões antigas nas cidades amazônicas. Grades em formas de rosetas decorativas postos de maneira estratégica que a ventilação se cruza, usam o mesmo como aliado. Dispensam muitas vezes janelões de madeira e colocam no lugar somente grades. Outro convite para o vento refrescar todo o interior da casa. A chuva que entra, sacou? bem na diagonal, não faz mal nenhum ao chão de pedras ou lajotas. E claro, pé direto alto! Todo mundo sabe que o ar quente sobe. Certas casas até parecem desproporcionais de tão altas. Para ajudar mais na circulação lá no alto, as paredes de muitas casas amazônicas antigas vão só até certa altura. Deixam, lá no alto, grandes vãos em aberto. Aceitam, uma pequena desvantagem, a total falta de privacidade. Quem já usou um banheiro aberto por cima, sabe do que estou falando.
E as casas sobre palafitas da várzea! Que coisa mais ingeniosa! Sobem as águas, sobem-se as tábuas do piso, suspendem os móveis até as águas novamente vão embora, baixando. Mesmo as hortinhas, sempre há uma, são suspensas. Todo mundo sobe e desce, o gato também, e balança em passarelas mirabolantes até chegar em casa. Melhor só as cozinhas. Abertas para o rio, no alto, e lá embaixo as galinhas que já somem com tudo que lhe cai no bico. Na terra firme as cozinhas também muitas vezes nem paredes tem, só um tipo de cerca de madeira.
Uma das típicas casas de caboclo, aberta para o rio, só com grades de madeira.
Algum lugar do outro lado do rio mostra como uma casa de palha é funcional. Dá até pra fechar e abrir as janelas.
Nos interiores, mesmo em Santarém, ainda há as casas emendadas, remendadas com estilo bem próprio e sempre em cores muito vivas.
Diretamente postos na calçada, umas já parecem um pouco tortas.
As grades, muitas grades, só nas cidades grandes onde todo mundo vive com parece, com muito medo. Olhando pra cima, mesmo os andares superiores são gradeados.
A casa vista como uma obra aberta
Puxadinho pra lá - um anexo acá. Casas caboclas tem algo de provisório, temporário, são extremamente adaptáveis e mais ainda agregadores. Precisa de um quarto a mais para uns filhos, uma nora ou um bebê? Vamos agregar. Também a casa pode ser entendida como construção em andamento. Precisa de um quarto novo? Vamos erguer uma nova parede? Um puxadinho?
Em Alter do Chão tem um punhado de gente que procura viver mais perto da natureza e repete à sua maneira o conceito antigo. Vamos visitar algumas casas, na maioria de mulheres, que abrem até certo ponto mão de luxo e ostentação, ganhando uma liberdade que a cidade nunca lhes daria. Todas essas mulheres e poucos homens participaram de puxiruns da Marlene, colocando a mão na massa uma de outra, ou melhor ainda, amassando, pintando com barro.
Quem quer saber mais sobre a casa inspirador da própria Marlene aqui um detalhe do banheiro recém construído, visita:
https://o-boto.com/blog/bioconstrucao-holistica-amazonica-gaia-dbarro
Puxirum nas moradas das mulheres
Mulheres colocando a na massa.
Aline Teixeira, a perfeccionista. O mutirão na casa dela rebocou bem rapidinho umas paredes que ela mesma já ergueu.
A casa da Aline, bem amazônica, alta e fresca.
Aline colocou a luva porque o reboco contém um pouco de cimento. Suas paredes são obras de arte de tão perfeitas.
Quem quiser também pode usar, além das mãos, ferramentas de pedreiros.
A casa do casal Kawany Carvalho e seu companheiro Tcharles que construíram de zero um quarto adicional para seu amigo Yesé na sua casa no Caranazal.
Bem ao lado da casa a cova de onde sai o barro que vai fazer subir as paredes.
Erguida a tela de galinheiro, rapidinho a mesma está preenchida com barro.
Cada uma das participantes, uns já bem experts, tem sua própria técnica em "colar" o barro na tela. Precisa certa habilidade e a pressão certa para que a massa não simplesmente caia pelos buracos.
Punhado por punhado a parede está subindo. Depois será igualada com a próxima camada.
Do lado de dentro dá pra ver como o barro está "pendurado" na tela.
O puxirum a todo vapor. Já estão instalando a próxima parede.
Uma das muitas casas no Espaço Agroecológico Caminho das Pedras foi embelezada com uma nova pintura em geo-tinta feita de barro duplamente peneirado, goma de tapioca cozida e cola branca.
De baixo pra cima e com pincel a tinta está sendo aplicada na parede.
Como qualquer tinta, a tonalidade exata só se revela quando todo o barro secou.
Uso de materiais e recicláveis
Muitas casas mais alternativas de barro usam garrafas embutidas na parede o que dá lindos jogos de luz.
Esterilizadas, fechadas e depois instaladas as garrafas prontos para serem envoltas com barro.
Por fim, os arames que seguram as garrafas no lugar desaparecerão debaixo do barro.
Na casa da Késia as garrafas fazem todo um jogo de geometria. Uma vez terminados, tem que ser limpas.
Paredes de alvenaria recebem uma camada de barro! Com certeza isso ajudará a refrescar o lugar.