As cobras, todas altamente venenosas, que lhe dão o nome, Chico mantém longe. Seu contato é indireto, mesmo que Chico os conheça intimamente. Sabe tudo sobre picadas de bichos peçonhentos, além das picadas de cobras, trata quem foi atormentado por arraias, aranhas ou escorpiões. Chico os cura. Dono de uma poção mágica, garrafada, antídoto, de cor alaranjada, um tanto turvo, o líquido misterioso enche sua caixa de isopor. Poção infalível, duradoura, receita de família, bem guardada, passada do pai para o Chico, o Francisco, o encantador de cobras.
Todos, caboclos quanto médicos concordam: A lista de animais peçonhentos na Amazônia é longa, complexa e devastadora. Dos médicos, Chico garante, ele ganha de longe, daqueles médicos estudados, da cidade. Reforça a declaração com ofícios, declarações de agradecimentos, cartas cheias de carimbos e assinaturas rebuscadas, todos reconhecendo os seus feitos e suas curas. O que na verdade impede um reconhecimento pleno está na receita de família. Chico garante que a receita funciona, mas revelar a receita, uma mistura de ervas? Por nada no mundo! Gestos e voz não escondem a frustração. Ao mesmo tempo desafia qualquer um que não quer crer. Resultado? Obstáculos insuperáveis separam o mero curandeiro, profundo conhecer das ervas locais, supostamente “sem instrução”, do médico tradicional.
O encontro com Chico, o nome completo ele não revela, o encantador de cobras, levanta muitas questões, de ética, de respeito, da medicina alopática e por fim também etnológicas. Fato é: a medicina convencional ainda está mal equipada para lidar com picadas desse tipo nas selvas amazônicas. Como cada espécie de cobra possui seu veneno específico, consequentemente precisa de soro antiofídico correspondente. O antídoto só funcionará se o animal for corretamente identificado. Além disso, o paciente tem que chegar a tempo ao posto de saúde ou hospital mais próximo. Outro fato é puramente psicológico. Se por acaso uma arraia picar, isso normalmente não é fatal não, mas extremamente doloroso. A dor deixa qualquer ser humano com medo bem real de ter que encarar a morte. Picadas de arraia a medicina convencional suprime a dor e os devidos medicamentos diminuem o inchaço.
E é aí que entra Chico. Vive em Óbidos, um dos interiores brabas perdidos no mundo amazônico, onde convivem os mais diversos mundos amazônicos. Ai a medicina do mundo moderna ainda não chegou com todo requinte. Moradores mais tradicionais são muito agradecidos que tem o Chico para lhes atender. Abrindo aspas - A história de Chico lembra em muitos aspectos aquela de outra poção chamada "Específico Pessoa", uma infusão de ervas que, como a de Chico, cura muito mais do que picadas de cobra e de escorpião. Em muitos sertões brasileiros não falta “Específico Pessoa” em nenhuma caixa de primeiros socorros. E muitas pessoas confiam nela. Desencadeou um tipo de cabo de guerra. Bem conhecida e valorizada pela etnobotânica, ramo da botânica que estuda o uso das plantas pelos povos, “Específico Pessoa” é desrespeitado e desacreditado tanto por médicos quanto por químicos que cansaram de provar que a poção não surte efeito nenhum. O que é a voz deles contra aquela de pessoas desprovidas que contam cada uma de uma outra cura mais surpreendente e milagrosa do que a outra.
No entanto, é fato que a biodiversidade das florestas tropicais da América do Sul guarda um tesouro desconhecido e inexplorado. A floresta tropical é rica em plantas aromáticas e medicinais, cujo uso tem sido transmitido de geração em geração. Em 1993, o Brasil, juntamente com outros 192 países, assinou no Rio uma convenção sobre o uso da sua biodiversidade, um acordo global para seu uso sustentável. Regulamentação de peso já que se sabe ainda muito pouco da flora e da fauna existentes no Brasil, tecnicamente classificadas como patrimônio genético, nem entrando no mérito que apenas um pouco mais do que 10% dela até agora foram catalogada.
Pairam no ar inúmeras questões sem respostas. Chico que se declara descendente dos povos originários afirma que sua poção cura picadas e feridas de animais peçonhentos. Uma poção que é um segredo de família que ele não está disposto a revelar. Tem lá suas desconfianças como muitos outros curandeiros e erveiras. Muitos já foram enganados e coisa pior. Além disso, lidar e curar picadas de cobras é um ato envolto de segredos, tabus, uma experiência que beira a morte, altamente emocional, valorizada, temida e ao mesmo tempo não isenta de sensacionalismo.
Resuma-se para a ciência moderna e o mundo capitalista nessas questões básicas: Quem será que é dono de uma planta? A quem pertence o conhecimento dos seus poderes de cura? Qual é o valor real de uma planta da floresta tropical? Quem deveria ter a permissão para estudá-la e com isso potencialmente beneficiar dela? E a etnobiologia – até que ponto é confiável como base para novas pesquisas? Tudo deságua na pergunta – quem será o dono do “conhecimento” sobre a fitoterapia amazônica?
A legislação brasileira, atualmente muito debatida nos meios acadêmicos, tem uma resposta clara. Somente aqueles que possuem uma licença governamental podem pesquisar plantas. Quem desobedece aguarda multas pesadas. O que na realidade “congela” a maioria dos projetos. Embora empresas como, por exemplo, a Natura resolveram seus problemas com acordos como aquele firmado com as erveiras famosas do não menos famoso Ver-o-peso em Belém, lhes pagando uma quantia não revelada pelo uso do seu “conhecimento”, o problema em si ainda está longe de ser solucionado.
A luta do Chico da cobra já dura quinze anos. Tudo muito bem documentado nesta pasta verde que contém todos os documentos. Vários prefeitos lhe atestaram o poder da cura com carimbos e frases lindamente delineadas. Um deles até mandou fazer um projeto para uma casa, uma sala de atendimento. A Marina, sim, ela lhe deu um barco. Aquela que ele chama carinhosamente e com toda a intimidade é nada mais do que aquela Marina, Marina Silva, ativista ambiental e ministra, ex-candidata à presidência. A conheceu lá em Brasília. O barco? Acabou de vendê-lo. Mandou construir um maior e melhor. Observa diariamente o progresso da construção não perdendo nenhuma curva ou detalhe.
Na verdade, foi lá no estaleiro que a gente conheceu o Chico. Habilmente o carpinteiro naval encaixa mais uma prancha comprida nas costelas que já se curvam elegantemente em direção ao céu. O esqueleto da embarcação já tomou corpo. Beiro rio o seu esqueleto maciço se destaca, escuro, quase preto, da grama verde. Chico nos leva, estrangeiros curiosos e supostamente instruídos, de imediato para sua casa. Fica logo aí, a caminhada é curta. Jura que mora num dos lugares mais lindos do mundo. Mora sob as águas. Conta das tartarugas e jacarés que costumam visitar.
Uma ponte de madeira estreita acessa a casa. Os dois cães, mesmo bem amigáveis, educadamente não nos acompanham na travessia. Na casa, erguida sobre palafitas, lá no alto sobre as águas barrentas do Amazonas, evitamos perguntas sobre o funcionamento do saneamento. A casa? Toda construída por ele mesmo, nunca termina, logo, logo construirá outro puxadinho. Tem que acompanhar, enfim, o aumento da família cada vez mais numerosa. Um genro ou nora a mais e logo um ou dois netos. Mostra com orgulho o mastro do barco que receberá a bandeira, a figura da proa. Sim, Chico da cobra também é habilidoso carpinteiro.
Bem provável que filho nenhum dele continuará o seu trabalho de encantador de cobras. Aprendeu tudo que sabe com seu pai, um indígena genuíno do Mato Grosso. Toca mais uma vez no assunto central. Sim, sua poção cura qualquer tipo de picada, ferida causada por qualquer animal peçonhento. Consegue distinguir uma picada na hora. Só observando o paciente e seus sintomas e logo distingue se se trata de uma picada de cobra, de aranha ou escorpião. Uma não menos assustadora do que a outra. Nisso nenhum médico da cidade lhe iguala. Falta-lhes esse olhar e já muitas vezes tem que corrigir o diagnóstico deles. A grande maioria dos afetados, infelizmente, o procura somente quando já desistiu dos remédios alopatas e dos médicos. E graças a Deus ele pode ajudar todos. Com sua poção única. Até aqui nenhum dos médicos conseguiu explicar como funciona. Tiram mil fotos, antes e depois para enfim começar a respeitá-lo. Respeitar de verdade. Quem fica assustado e anojado são os seus filhos. É que as pessoas que chegam gritam, fiquem fora de si de dor, um membro já em estado de decomposição, necrose. Precisam-se nervos fortes para aguentar esse chamado.
A até hoje a admirada “Flora brasiliensis” do naturalista, botânico e etnógrafo alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, publicada entre 1840 e 1906, traz referências a uma planta brasileira com supostas poderes de curar picadas de cobra. Popularmente chamada de “Cayapiá”, foi identificada como “Dorstena brasiliensis”. Von Martius a descreve como um antídoto para todos os tipos de venenos, especialmente eficaz contra picadas de cobra. Mais um conhecimento etnobotânico, altamente complexo, difícil de verificar.
Chico não é dos mais jovens. Mesmo sendo daquela tribo esguia cujos membros costumam viver cem anos, um dia chegará sua hora. Não, atualmente não tem como passar pra frente o seu dom, todo o seu conhecimento. Ainda não lhe foi enviado por Deus alguém que seguisse os seus passos. Iniciado só pode quem sente o chamado. Quer assumir esse fardo e a honra de se reconhecer curandeiro. Ter a capacidade de encarar a dor, encarar olho no olho. A única que não sente medo é a neta. Sentados em cadeiras de madeira, um círculo pequeno, aparece uma vizinha para uma palha de prosa. Na grande mesa da família estão tomando um segundo café de manhã. Aparece de supetão. Senta-se, respeitosamente à distância. Introduzir uma mulher? Isso seria possível? A resposta é evasiva. Indiretamente afirmativa. Uma coisa lhe é certa: Entregará de jeito nenhum o seu segredo a um daqueles médicos da cidade. O que ele procura permanece vago, indescritível. Quer ser reconhecido, respeitado, será reconhecido também financeiramente?
O rito da iniciação é terrível. Durante o longo aprendizado o aprendiz absorve tudo que é necessário até o tempo afunila, chegando naquele momento decisivo. Sabe agora reconhecer e colher as ervas, identificando os lugares onde crescem. Sabe misturar e acrescentar os ingredientes restantes, inclusive açúcar, consegue preparar a poção. Sabe o ponto de fermentação certo quando enfim chega naquela provação. O aprendiz a prepara, a poção, pra si mesmo! Deve curar-se mesmo com sua própria beberagem! Difícil refutar a lógica brutal por trás: somente aquele que sofreu a dor, experimentar em primeira mão, no próprio corpo o tormento será capaz de curar a mesma dor nos outros.
Chegando nessa encruzilhada, o iniciado está pronto. Deixa-se morder ou picar. Escolhe entre uma cobra venenosa, um escorpião ou uma das temidas aranhas. Picadas de cobra costumam surtir efeito quase de imediato. A dor atinge o corpo como se fosse um raio. O membro afetado começa a inchar. A pele de imediato se torna azulada, sob tensão, extremamente suscetível à dor. Se nada for feito, os efeitos colaterais ocorrerão rapidamente. A pessoa afetada sente muita fraqueza e enjoo, ao mesmo tempo fica extremamente agitada. Medo de morrer lhe atormenta, sente tonturas e dores indescritíveis. Ao redor da ferida começam a se formar coágulos sanguíneos. O corpo todo fica extremamente sensível a qualquer dor e é impossível se acalmar. Algumas pessoas começam a enxergar em duplo. Gengivas e outras partes sensíveis do corpo começam a sangrar. Como o veneno reduz a pressão arterial, o sangue começa rapidamente a coagular. Quem ficou curioso, mais detalhes desagradáveis se acham facilmente na internet. Nesse estádio a poção do Chico da cobra parece fazer milagres.
As desgraças não param por aí. Picadas de aranhas prometem ser mais cruéis. Contrariando a crença popular, não são as aranhas gigantes e peludas tipo caranguejeira que são as mais perigosas. Jogam no máximo uns pelos urticantes no inimigo. Pode doer bastante localmente, mas a dor passa sozinha depois de um tempo. As mais perigosas são as pequenas e discretas aranhas marrons. Injetam, junto à mordida, um anestésico o que deixa essa muitas vezes despercebida. Tempo suficiente para o seu veneno desenvolver seu efeito gradativamente. Aqui a poção do Chico também entra em ação. Com orgulho expõe todo o seu estoque guardado num grande isopor. Separados com cuidado por divisórias, litros e outras garrafas de cachaça esperam enfileiradas, todas cuidadosamente fechadas com rolhas. Tirando duas, segurá-las contra a luz, sedimentos turvam o líquido alaranjado.
Todos os seus filhos estudaram. Uma filha é professora de inglês. Antes de irmos embora, me pede para ler em voz alta. O livro grosso, a capa de couro, parece ter significado especial para ele. O trata como uma espécie de Bíblia. Contém citações, divididas em seções. Falam de profetas. Profetas desacreditados. Profetas cujo conhecimento nem pode ser medido nem em ouro.
Mantendo a distância respeitosa, lá no parapeito, quase inexistente e em silêncio, mas mesmo assim não menos presente, a neta. Os pés descalços. Ao alcançar um par de sandálias de plataforma e salto altíssimo. Será que ela será um dia capaz de unir esses mundos que contém tanto sofrimento, dor e poder, irracionalidade e sabedoria ancestral?