O BOTO - Alter do Chão
Você procura por
  • em Publicações
  • em Grupos
  • em Usuários
loading
VOLTAR

Amazônia: na maior bacia hidrográfica do mundo, comunidades do Pará não têm água potável

Amazônia: na maior bacia hidrográfica do mundo, comunidades do Pará não têm água potável
Leonardo Milano
jan. 13 - 10 min de leitura
000

 

 Texto e fotos: Leonardo Milano

Esquecidas pelo poder público, milhares de famílias do Oeste do Pará têm contado com a ajuda humanitária de organizações da sociedade civil, que vêm distribuindo filtros feitos com nanotecnologia nas comunidades ribeirinhas.


No Igarapé do Costa,  da margem esquerda do Rio Amazonas até a comunidade, são cerca de 6 quilómetros - Foto: Leonardo Milano

No encontro entre as águas barrentas do Amazonas e as águas esverdeadas do caudaloso Tapajós, vivem milhares de famílias, em casas adaptadas para a grande  variação sazonal do nível das águas desses imponentes rios. A região é chamada localmente de  “várzea", um complexo e rico ecossistema, abundante em peixes e solo fértil, propício para a agricultura familiar.


Na seca extrema que afeta a Amazônia, as crianças sofrem  com a falta de água potável - Foto: Leonardo Milano 

Sob o solo do Oeste do Pará, está o maior aquífero de água doce - em volume - do mundo, chamado de  Aquífero Alter do Chão. Ironicamente, essa descomunal abundância de águas, ou não está acessível, ou não é propícia para a ingestão humana. As águas da região carregam grande quantidade de sedimentos e poluentes, como mercúrio, esgoto, restos e dejetos de animais, entre outros.


Ribeirinha da comunidade Pinduri ajuda a desembarcar filtros de água destinados à sua comunidade, localizada na beira do rio Amazonas - Foto: Leonardo Milano

Comunidade Enseada do Aritapera com um afluente do rio Amazonas completamente seco , - Foto: Leonardo Milano

Com a chegada do período chuvoso, a qualidade da água piora, pois as chuvas levam mais sedimentos e poluentes para os rios e lagos. Já no período de seca, agravada fortemente na Amazônia pelas mudanças climáticas,  a dificuldade  de acesso à água potável aumenta drasticamente e,  em algumas comunidades, é preciso se deslocar por mais de cinco quilômetros para chegar a algum corpo d’água, quase sempre impróprio para o consumo humano, sem o devido tratamento.


Onde antes havia água, agora há solo rachado e animais mortos na várzea amazônica - Fotos: Leonardo Milano

Filtros com nanotecnologia 

Importados da China pela ONG Projeto Saúde e  Alegria (PSA), em parceria com outras organizações da sociedade civil  locais, os filtros têm sido entregues  nas comunidades ribeirinhas do baixo Amazonas, por meio de uma complexa logística, que envolve o uso de embarcações de diferentes portes, para levar a tecnologia chinesa até as comunidades espalhadas por um labirinto de ilhas, lagos e afluentes. Muitas das comunidades não estão próximas das margens dos rios navegáveis. Às vezes é preciso desembarcar os kits de filtros em locais distantes, e transportá-los até as comunidades a pé, de carroça puxada por boi,  ou em algum veículo motorizado em más condições de conservação.

Onde os barcos não chegam durante a estiagem, o transporte dos filtros de água é feito por carroças puxadas por bois - Foto: Leonardo Milano 

 O calor intenso, a lama, a areia, pedras e a ausência de meios de transporte adequados dificultam muito o deslocamento. As entregas dos filtros são sempre agendadas previamente com as lideranças comunitárias, e quando a equipe responsável pelos filtros chega, as famílias já estão aguardando para recebê-los. Cada família recebe um kit contendo o filtro, uma pequena mangueira, um reservatório, que armazena a água que será filtrada, e uma seringa para higiene interna do produto. Juntamente com o kit, as famílias recebem uma orientação de como usar e fazer a manutenção dos filtros.


 Sob as discretas gotas de chuva do final da estiagem, kits de filtragem são entregues na comunidade Igarapé do Costa,  no Baixo Amazonas - Foto: Leonardo Milano

Em uma pequena - e das mais afetadas comunidades pela crise hídrica, a comunidade Costa do Lago, crianças experimentam a água filtrada do rio Amazonas. Foto: Leonardo Milano

Até o momento, cerca de 3500 pessoas foram beneficiadas pelos filtros, somente  no baixo Amazonas. A meta é distribuir  5 mil filtros nesta região. Indígenas Munduruku afetados pelo garimpo ilegal de ouro no médio Tapajós, ribeirinhos de comunidades próximas de Belém-PA e até pessoa atingidas pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul também já foram beneficiadas pelos filtros com nanotecnologia. Segundo o PSA, em quase três anos de atuação, já foram distribuídos 5.900 filtros, somando-se todas as regiões de atuação da ONG.

Ana Costa, amazônida nascida em uma comunidade da região, é técnica de campo do PSA e responsável por fazer as entregas nas comunidades do Baixo Amazonas, além de explicar o uso dos filtros para as famílias. Organizada, focada e conhecedora da realidade local, Ana sabe como se comunicar de forma informal e acolhedora com as famílias em situação de vulnerabilidade hídrica. A técnica do PSA conta que passou a infância carregando baldes de água na cabeça em Maripá, comunidade situada na margem esquerda do rio Tapajós, onde nasceu.

“Conhecer as histórias de vida dessas pessoas me fortalece, e me inspira a continuar buscando soluções de apoio. Passei minha infância carregando baldes de água na cabeça, e sei exatamente o que é viver em uma região rodeada por  água doce, mas ter tão pouco acesso a água para beber” (Ana Costa)

Técnica do PSA demonstrando que a água também pode ser filtrada a partir de garrafas pets - Foto: Leonardo Milano

“O Ministério da Saúde (MS), por meio da Nota Técnica Nº 68/2024, reconheceu os filtros que estamos distribuindo nas comunidades como eficazes no tratamento de água para consumo humano. Não há tecnologia similar no Brasil ainda, e é preciso passar por processos longos de importação” (Jussara Salgado, Coordenadora do Programa de Infraestrutura Comunitária do PSA)

Eficácia e limitações dos filtros

A ONG responsável pela entrega afirma que uma das vantagens dos filtros  é que eles não necessitam de energia elétrica para funcionar, pois utilizam apenas a força da gravidade ou pressão manual a partir de garrafas de plástico com a água a ser filtrada. Dentro do dispositivo, há membranas de polisulfona - um polímero que aguenta altas temperaturas -  que filtram partículas de até 0,02 micrômetros, e têm 99,9% de eficácia na retenção de vírus, bactérias e impurezas da água. Para se ter uma ideia, uma bactéria como a Escherichia coli, presente nas fezes de pessoas e outros animais, tem cerca de 0,50 micrômetros. Os filtros têm se mostrado eficientes em locais remotos, capazes de tornar potável a águas contaminadas de lugares que não possuem tratamento de água

Ana mostra para os comunitários como fica a água usada para lavar os filtros, após cada filtragem - Foto: Leonardo Milano


Ana Costa, quando fala sobre a manutenção dos filtros para as comunidades, explica que, segundo o fabricante, cada  filtro tem durabilidade de até cinco anos, mas a técnica do PSA adverte que essa validade não leva em consideração a quantidade de sedimentos que existem em muitos rios da Amazônia, e que é necessário fazer a limpeza interna do filtro a cada balde de água filtrado. 

“Os filtros não são uma solução definitiva para a falta de água potável, mas podem ser mais uma opção para ajudar a minimizar os efeitos da seca extrema que assola as comunidades. A tecnologia existe, falta é os poderes públicos municipal, estadual e federal abraçarem a ideia. O Ministério da Saúde já declarou que os filtros são efetivos”, (Ana Costa)


Morador da comunidade Igarapé do Costa, experimenta a água salobra após passar pelo filtro de nanotecnologia - Foto: Leonardo Milano

Diarreia

Segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde do Pará (SESPA), no primeiro trimestre de 2024, mais de 9 mil casos de diarreia foram registrados no Oeste do Pará, um aumento de 13% em relação ao mesmo período de 2023. Crianças e idosos são os mais afetados. Na maioria das comunidades atendidas pela campanha de entrega de filtros, são frequentes os relatos de casos de diarreia, principalmente em crianças. Os comunitários afirmam que a água de má qualidade é a responsável por estes casos. 

Um estudo feito pelo Instituto Águas e Saneamento aponta que, em Santarém, quase 170 mil habitantes não têm acesso à água provida pelo poder público local, o que configura mais de 50% da população do município, que é de 331.942 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, 2022). Mais de 90% da população não tem acesso a tratamento de esgoto.

Em muitas comunidades, porcos, cachorros, bois, cavalos e galinhas circulam livremente , defecando e urinando   próximo aos corpos d'água. Foto : Leonardo Milano.


Para Caetano Scannavino, coordenador do PSA e ambientalista com quase 40 anos de atuação no Oeste do Pará, os desafios sanitários na Amazônia são gigantescos, e os representantes do poder público  precisam ser mais proativos  na busca de parcerias que tragam soluções eficazes para os problemas da população. O ambientalista destaca que não há a intenção, por parte das organizações da sociedade civil, de substituir o Estado, que é quem tem a responsabilidade constitucional de tomar medidas para que a população tenha acesso à água com qualidade. 

“Como sociedade civil, a gente tenta ajudar, mas é preciso uma atenção prioritária, com medidas emergenciais dos governos, para escalar essas soluções e tecnologias para um número muito maior de famílias. Qualquer iniciativa nesse sentido contará com nosso total apoio” (Caetano Scannavino)


Água do rio Amazonas (à esquerda), e a mesma água após passar pelo filtro de nanotecnologia (à direita). Foto: Leonardo Milano



Denunciar publicação
    000

    Indicados para você