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Bela Gil e Paola Carosella

Bela Gil e Paola Carosella
Patrícia Kalil
jul. 2 - 16 min de leitura
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Entre lives e mortos, dias de pandemia e fim da boemia, fiz uma transcrição livre dos melhores trechos da conversa da Bela Gil com Paola Carosella. Paola contou sua experiência em fechar-mudar-reabrir o restaurante e explicou suas prioridades: pagar os salários de todos os funcionários e manter a mesma média de consumo dos agricultores familiares que fornecem para o restaurante. As duas conversaram sobre saúde, sobre comida de verdade, sobre qualidade e sobre quantidade. Falaram sobre ouvir mais, são muitas vozes falando agora. Paola lembrou aos mais convictos que é sempre bom duvidar de certezas antes de defendê-las cegamente. Ouvir, perguntar, ler, pesquisar. Falaram sobre a indústria alimentícia e sobre pobreza. Falaram também sobre a necessidade de mudança, das "prioridades prioritárias", da brevidade da vida. Veja vídeo completo aqui: https://www.instagram.com/tv/CCE7trPjZYL/  

Bela Gil: Começando por essa loucura que estamos vivendo, como está sendo para você manter seu restaurante e funcionários?

Paola Carosella: Já no começo de março, eu sabia que (a epidemia) ía chegar. De uma semana para outra eu entendi que tinha que fechar, muito antes mesmo de uma ordem do governo. Você lê jornais, vê o que está acontecendo no mundo todo. Tenho amigos chefs mundo afora... eu estava vendo: simplesmente não tinha sentido nenhum manter o restaurante aberto (ela conta depois na entrevista que abriu no dia 24 de março, tendo usado duas semanas para adaptação). 

A primeira coisa que eu entendi é que a gente precisava deixar o restaurante mais vazio e planejar a equipe dentro do restaurante. Montei uma equipe muito pequenininha, eu liderando com os meninos mais jovens que tinham carro e que não tivessem na família nenhuma pessoa no grupo de risco: nem filho pequeno, nem idoso, nem diabético... Fiz um grupo de dez pessoas. Tirei o cardápio do Arturito e falei: 'isso aqui tem que ser uma operação muito simples, um prato por dia'. Se eu tivesse continuado a fazer a mesma coisa, delivery dos pratos do Arturito, não ia funcionar: a gente tem que entender que o momento é outro, vai ser outro, nunca mais vai voltar ao que era, pelo menos eu não pretendo voltar ao que era. 

A fórmula para que funcionasse agora foi priorizar o dinheiro suficiente para manter todos os salários –até agora a gente não teve que demitir ninguém–, e continuar favorecendo os agricultores familiares, que são os que fazem parte da comunidade do restaurante. 

Como eu trabalho junto com a cooperativa de produtores orgânicos, eu recebo a lista deles três vezes por semana. A ideia foi criar um prato que tivesse a maior quantidade de insumos deles, para que mesmo vendendo menos quantidade de comida (por causa da pandemia), eu comprasse o mesmo volume deles porque tudo ia para um prato só. A operação é muito simples, receber os ingredientes, cozinhar, vender. É tudo muito fresquinho.  Então, a gente conseguiu isso! Estamos faturando 40% a menos que a média, mas com os deliveries foi possível comprar o mesmo volume de dinheiro dos agricultores e não demitir ninguém. Isso para mim foi muito impactante.

Bela: A gente não pode voltar para o que era.

Paola: O que era nos trouxe aqui. 

Bela: Você trabalha com os agricultores há muitos anos. Qual a importância dessa conexão direta com os agricultores, conhecer, saber de onde vem, respeitar o trabalho dessas pessoas?

Paola: Eu sempre cozinhei muito perto das pessoas e dos ingredientes, sou cozinheira, não uma grande chef de cozinha. Como empresária, sinto que consigo impactar de muitas formas diferentes e concretas a vida das pessoas que trabalham comigo, na comunidade de quem eu compro, fortalecendo a agricultura local e familiar porque é a única saída que temos para ter uma sociedade sadia, para que todo mundo possa exercer seu direito de se alimentar de forma correta e saudável. Esse é muito mais meu desejo que ganhar uma estrela Michelin. 

Cresci cozinhando e fui fazer carreira. Quando tinha 27 anos fui trabalhar em São Francisco no restaurante de uma mulher que é discípula de Alice Waters. Lá, há mais de 20 anos existe uma cultura de cozinha focada no ingrediente. Uma vez que você vê isso, você não quer mais nada. Onde eu trabalhava, tinha até a lixeira do porquinho, onde jogávamos as cascas de laranjas e outras aparas cruas, os restos que o criador pedia porque os porcos comer. Quando você isso, vê que pode funcionar. Não tem que ser só possível em São Francisco, Nova York e na Toscana. Eu tentei reproduzir isso aqui desde que cheguei em São Paulo, em 2001. No começo,  não tinha uma rede de fornecedores. Quanto mais pessoas iam aparecendo, mais eu ia abraçando, construindo essa rede. É isso que faz com que eu goste de cozinhar, fortalecer um sistema que eu acredite.

Bela: Você usa a culinária como ferramenta de transformação social, cultural e ambiental. O que te incomodava no sistema para encontrar esse novo jeito de fazer as coisas? 

Paola: A gente vai crescendo na vida como pessoa, amadurecendo, ampliando. Eu cozinho profissionalmente desde 18 e passei dentro de cozinhas de restaurantes dos outros até os 28. Quando comecei a me abrir mais para o mundo, comecei a ver coisas e também a ver saídas. Fui andando junto nessa transformação. Você conhece agricultores familiares e você descobre um mundo. Depois você vê a indústria da alimentação e pensa: "isso cheira feio". Daí você vai indagar, vai ler, vai estudar e percebe: "não só cheira feio, está podre". O grande negócio da comida é que não é só comida, é a nutrição da humanidade em todos os sentidos. É onde vivemos, como vivemos, como se fazem as capitais, por que temos capitais, como se fazem as estradas, entender porque tem tem pobreza, tudo está aí. Como não ser parte disso?

Bela: O sistema no qual a gente vive induz e produz a fome, é a forma de se manter. Você fala e você faz as coisas, o Arturito está aí no meio dessa pandemia dando exemplo.

Paola: Não sei se é significativo, mas faço o que falo. Com esse governo que temos agora, comecei a falar um pouco menos, tive um pouco de medo, recebi algumas ameaças. Como não sou brasileira, tive medo que mandassem embora...  minha filha está aqui. Mas quanto mais eu me calei, muito mais eu fiz. Mais projetos eu me envolvi, mais aulas de cozinha dei. Minha energia de vida está nessa conexão, se não seria só enfeite. 

Bela: O que mais te tocou nessa pandemia?

Paola: Para a maioria essa pandemia é um horror...Ficar em casa? Qual casa? Um sobrado sem janela? Perto de um córrego onde corre esgoto? Essa é a realidade desse país. Tenho uma realidade de pessoa privilegiada. A primeira coisa que pegou para mim, é que eu tenho uma realidade de pessoa privilegiada. Amo ficar na minha casa. Foi uma certificação disso. Eu não gosto de festas, não gosto de jantar fora, não gosto de ir a restaurantes, eu amo ficar em casa, eu amo escolher o que vamos comer, eu amo cuidar da minha filha. Eu sou uma empresária, mas como eu estava trabalhando muito no ano passado, contei com a ajuda de muitas pessoas. Penso: eu preciso trabalhar tanto? eu preciso sair daqui tanto? é tanto mais importante ter que fazer aquela outra coisa do que ficar em casa? Que tipo de vida eu quero depois? Quais são as prioridades? A vida é tão curta. Pim, a gente foi embora! Que tempo eu quero ter, quais são as prioridades? Eu não tinha tempo de ler, fazer a cama…  parece que era uma idiota que não fazia nada antes, mas sempre estive trabalhando muito. A gente tem que ser prioridade.  A casa é a gente, é a conexão com nossa família e a gente não pode esquecer. 

Bela: O que a gente está vivendo hoje tem muito a ver com a nossa desconexão com a vida. O que a gente precisa mudar?

Paola: São muitas as coisas que a gente precisa mudar. Tenho certeza que muitas sementes estão sendo plantadas. Muitas pessoas que antes não tinham voz, estão tendo. E essas pessoas um dia vão chegar nos lugares certos. Talvez eu não veja essa mudança, mas tenho certeza que o mundo vai mudar. Vai ficar muito mais amoroso. Vejo as raízes se mexendo para isso.

Bela: O que é ser em defesa da comida de verdade?

Paola: Tem a ver com o lugar onde vivemos, quem faz, como ele se relaciona com o meio ambiente e cultura do lugar onde você está e a possibilidade que a comida tem de alimentar a todos. A verdade dessa comida (me importa), porque isso é comida e outra coisa não. Para mim comida de verdade são todas as coisas do reino vegetal, não só a soja, o milho e a cana, mas todas as 25 mil variedades, todos os que trazem conhecimentos ancestrais e foram cuidadores dessas sementes e dessas coisas. Ainda como bichos, mas não como qualquer bicho, só como os que sei como são criados e cuidados. É extremamente elitista, mas ao mesmo tempo é uma forma de fortalecer um sistema que acredito que poderia acontecer se nós comêssemos de outra forma, entendendo como era sua conexão com a vida de um animal. Uma das maiores crueldades que a indústria da alimentação fez foi nos separar dos animais, a gente pega a bandeja de carne e não faz a conexão de onde isso vem. Quando você visita fazendas de permacultura onde tem plantas e bichos, você entende o porque da vaca, da galinha e do porco na fazenda. Se você eventualmente tinha que matar um porco, talvez ele levasse um ano inteiro para ser consumido. Gosto muito do jeito que a França encara a comida, porque para eles a gastronomia é cultura. Você entra em um açougue na França e tem um prato desenhado com ⅓ com carne e o resto vegetais e cereais. Eles mesmos falam. Lá, eles não consomem só filé mignon e alcatra, tem o bicho inteiro e respeito pelo bicho inteiro. Como cozinheira ainda acredito no artesanato das pessoas que fazem o que fazem com muito respeito ao meio ambiente. Porque esse é o lugar onde eles estão vivendo. 

Bela: Você tem alguma pretensão em se tornar vegetariana?

Paola: Várias vezes. Eu sou bastante vegetariana. Como pouca carne. Meu relacionamento com a comida é influenciado por muitas coisas, o meu lugar no mundo, o espaço que eu ocupo, sou muito cozinheira a minha vida inteira, me formei em cozinha clássica, aprendi na França. Às vezes, tenho vontade de cozinhar por cozinhar. O que importa é a qualidade dos ingredientes e a quantidade com certeza, a gente tem que comer muito menos. A gente deveria comer muito menos carne e muito mais das outras coisas para realmente equilibrar e viver em um lugar muito melhor. O que necessitamos é chegar mais perto da produção, entender o que é, que parem de afastar a produção do consumo como fazem. Precisamos estar mais perto de nossa comida. Somente criando consciência você vai entender. Por isso sou tão radicalmente esse hambúrguer vegetariano, porque ele não é de planta, ele é de soja ultraprocessada, exatamente da mesma coisa que as vacas são alimentadas. Você não está mudando nada fazendo isso, comendo esse hambúrguer de soja com maionese no pão processado. Não é por aí que vai. É isso é mais uma cortina para afastar mais pessoas.  Só estão transformando as pessoas que se sentem culpadas por comer carne para comer exatamente das mesmas marcas e das mesmas coisas sem a vaca no meio, fortalecendo o mesmo sistema. O universo sofre da mesma maneira. Se você quer comer um bicho, saiba que ele morreu, tem sofrimento envolvimento. A indústria nos livrou dessa dor e transformou a culpa em outra coisa que continua gerando miséria e pobreza. Quando a gente mudar a estrutura social, precisamos acabar com os monocultivos, precisamos nos relacionar com a agricultura de uma outra forma, parar de criar grandes cidades onde os agricultores desaparecem. 

Bela: É uma jogada, são grandes empresas usando da onda de consciência planetária para fazer o greenwashing. 

Paola: Pior, apenas colocaram uma fita na boca de quem estava reclamando, para parar de reclamar. Eles continuam fazendo exatamente a mesma coisa. Não estamos enxergando o problema. Eu faço um megasanduíche com plantas, mas coloco plantas dentro, não um hambúrguer de soja. Precisa entender, se relacionar, conhecer e respeitar. Comer exatamente as mesmas coisas para mim não muda nada.

Bela: Como você enxerga o papel da mulher hoje? 

Paola: Eu reparo como cresci dormida em uma sociedade que adormece as mulheres, onde as mulheres podem fazer algumas coisas e outras não. Os homens são muito importantes. Eu abri meu restaurante no Brasil com 30 anos, uma empresária gringa no Brasil, onde não é muito fácil ser empresária. Este agora é um momento onde a gente está entendendo como é incrível a força da mulher, como somos resilientes, como temos essa energia da construção. Com o tempo, a gente consegue ir se despindo de algumas coisas que a gente mama, que a gente vive desde que nasceu. A sociedade patriarcal tem um marketing muito bem organizado. Eu estou muito atenta ao que eu sinto e as coisas que me incomodam. Às vezes, temos que levantar a mão e dizer não, não é por aí não. É um momento muito rico para estar agora, cheio de coisas para fazer, para se envolver, para entender. É uma revolução, é um desses grandes momentos de revolução e fazer parte desse momento é extremamente interessante e desafiador. É um momento de ouvir quem está começando a ter voz, no meu lugar de mulher branca e privilegiada, é o momento de ouvir.  Esse é um momento que nós podemos falar e isso muda tudo. Pessoas que não são privilegiadas estão tendo espaço para falar, estão se abrindo espaços para essas vozes serem ouvidas. A Marielle morreu, mas nasceram milhares de outras. Esse é um momento que não vai passar despercebido, ao contrário. São sementes muito profundas. As mudanças estão se organizando e são consistentes. 

Bela: Uma mensagem final? 

Paola: Sinto que qualquer mensagem equivocada, porque vai ser sempre o meu lugar. Mas uma coisa que eu estou pensando é que é importante ouvir muito mais o outro. Não acreditar que sabemos tudo. E estudar muito daquelas coisas que a gente acha que tem certeza, para ter certeza que a gente tem certeza daquilo. Algumas coisas que temos revisar da nossa própria história. Estamos apontando muito os dedos e muitas vezes você conversa com uma pessoa que defende coisas que não conhece. Precisamos ser seres humanos mais responsáveis. 


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