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Ameaça ao Sairé gera reação e possível ruptura da festa

Ameaça ao Sairé gera reação e possível ruptura da festa
O BOTO
ago. 30 - 14 min de leitura
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Por Seu Dengo e Jackson Rego Matos

A comunidade ficou sabendo da existência de edital de privatização da festa do Sairé por notícias de jornais divulgadas em grupos de Whatsapp. O festeiro, os juízes, a equipe de mordomos, as rezadeiras e os rezadeiros, o capitão e a saraipora da mais antiga festa popular da Amazônia foram todos pegos de surpresa.

O Sairé é uma comemoração ritualística organizada por nativos há séculos. “A celebração tem um poder temporal, divino e espacial de encontro com o sagrado. Toda a escolha tem um simbolismo em relação ao Divino, representado pelo símbolo da festa, dos protagonistas e ritos”, explica Jackson Rego Matos. Eis os ingredientes principais da festa: a participação da comunidade nativa e a fé. Em setembro, os quatro dias de procissões, rezas, cantos e ladainhas em Alter do Chão condensam só uma parte de um grande conjunto de festividades realizadas no calendário cristão anual.

Sem defender a dimensão comunitária e tradicional da festa, a prefeitura pretende selecionar propostas de empresas de eventos inscritas no dia 21 de agosto em site do governo. A empresa com proposta escolhida nos próximos dias será responsável por todo agenciamento da festa comunitária do SairéQuem vai ler as propostas? Qual o critério de escolha? Além dos patronos do ritual sagrado, os barraqueiros de famílias nativas foram consultados? A situação tem gerado desgaste, desconforto e indignação dos nativos.

Segunda-feira, o ensaio da folia na casa da dona Maria Benvinda foi interrompido para a leitura da comunidade nativa da nota de repúdio (abaixo)

NOTA DE REPÚDIO

O Çairé é uma manifestação tradicional do povo indígena Borari que ocorre há mais de 300 anos na comunidade de Alter do Chão, composta por elementos religiosos e profanos. A manifestação continua acontecendo por força, organização e mobilização da comunidade, apesar das inúmeras tentativas de impedirem e de se apropriarem dela.

O Çairé, para nós Borari de Alter do Chão, é um corpo composto por vários membros da comunidade. Cada membro desse corpo possui uma importância histórica e cultural dentro da manifestação, porque são responsáveis pela organização, preparação e realização do Çairé. Os puxiruns iniciam os trabalhos preparando o terreiro; as rezadeiras e os rezadeiros, os foliões, os mordomos e as mordomas ensaiam as ladainhas e as folias; os barraqueiros, mordomos e mordomas fazem os enfeites; os troneiros confeccionam o trono da coroa do divino; os artesãos preparam os teçumes de palha para enfeites do barracão e barracas; as costureiras tradicionais da comunidade confeccionam as roupas do Rito Religioso e Profano (que são as danças tradicionais do Çairé); os catraeiros buscam e transportam os mastros, que é a procissão fluvial no Lago Verde; sem deixar de citar o Grupo Espanta Cão responsável pelas músicas tradicionais do Çairé tais como: curimbó, desfeiteira, marambiré, entre outras; as dispenseiras responsáveis pelocontrole da alimentação; conduzem o ritual: juiz e juíza, saraípora, capitão, sargento, moças das fitas, alferes, mordomos e mordomas, rezadeiras e foliões.

Diante disso, consideramos uma afronta ao povo Borari a atitude abusiva da Prefeitura Municipal de Santarém em privatizar o Çairé. Repudiamos o edital 022/2019-semgof/semc que sob o pretexto de “promover a integração, a inclusão social, a geração de emprego e renda e a valorização do nosso Município pelo seu povo através da promoção de seus atrativos turísticos, sua cultura e peculiaridades” excluí o povo Borari de sua própria manifestação cultural. Acreditamos que a nossa própria forma d organização já contempla e promove os elementos pretendidos no edital.

Gostaríamos de deixar claro, ainda, que o Çairé é sagrado para nós e não aceitamos que uma empresa venha fazer a “produção de rito religioso e profano” conforme prevê o edital

De acordo com a Constituição Federal de 1988, artigo 231 “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (…)” e segundo o artigo 6 da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), é necessário “consultar os povos interessados, mediante procedimento apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas Legislativas ou Administrativas suscetíveis de afeta-los diretamente”. Nossa comunidade indígena Borari de Alter do Chão não teve seu direito de consulta prévia, livre e informada violado e nossa organização social, nossos costumes, nossas crenças e nossas tradições não foram reconhecidas nem respeitadas.

A comunidade reunida na sede da Associação Indígena Borari de Alter do Chão no dia quinze de agosto de dois mil e dezenove (15/08/2019) exige o cancelamento imediato do edital 022/2019-SEMGOF/SEMC e, após o cancelamento, uma audiência pública em Alter do Chão para discutir o Çairé, aprova a nota e condiciona a não realização da Festa do Çairé 2019 à observância do solicitado.

Assina: Comunidade Nativa de Alter do Chão.

Segundo Dengo, quem escreveu a nota acima foi o rio Tapajós. Um ouvia, outro ditava, outro escrevia. Os nativos reclamam sobre a forma como a prefeitura tem agido sem levar em conta o caráter comunitário da festa. “Talvez desconheçam a forma como acontece a organização do Sairé e o papel crucial das famílias da vila na manutenção da fé e realização secular do evento”, comenta Dengo.

Seu Dengo, festeiro responsável pelo Sairé 2019

A decepção é tanta que os organizadores do rito religioso do Sairé já pensam em não participar do evento este ano.

“Se não cancelarem o edital, não vamos fazer a festa. O Sairé em Alter do Chão antes era em julho. Que se pensasse numa data para a disputa dos Botos mas que o Sairé ficasse no mês que era. Só por esse caminho será possível resgatar a fé e a tradição do Sairé. Que o Sairé permaneça como celebração popular tradicional, porque a parte sagrada está a cada ano perdendo seu espaço para o lado comercial da festa que interessa à prefeitura, com a disputa dos Botos e bandas.”

EXPLICA SEU DENGO, FESTEIRO RESPONSÁVEL PELO SAIRÉ 2019 ELEITO PELA COMUNIDADE

A comunidade nativa envolvida no ritual secular defende que o lado sagrado do Sairé não tem fins lucrativos.

Para o professor, pesquisador e folião do rito religioso Jackson Rego Matos, é um erro político desnecessário querer influenciar e até se apropriar indevidamente de símbolos sagrados da vila. A festa do Sairé possui relações comunitárias que a prefeitura desconhece e é muito delicado querer dar uma conotação econômica sem um estudo aprofundando do que o ritual representa para a Amazônia e para a nossa própria história. “A prefeitura vai entender que quem faz o Sairé são os nativos. Os rezadores são os verdadeiros patronos da festa e estão muito decepcionados com decisões sendo tomadas sem sequer consultar a comunidade, sem diálogo e o devido respeito com os que fazem verdadeiramente a festa. São eles que conhecem os valores do Sairé e cuidam dos mínimos detalhes da manifestação do sagrado“, explica.

O folião, professor e pesquisador Jackson Rego Matos ao lado de dona Luzia

“Marambiré”

Eu nunca neguei minha raiz. Desde os fim dos anos 70, é praticamente minha família, a dona Severiana “Xivica” (avó), o tio Neco (pai da dona Madá), a dona Luzia, os nativos que cuidavam do Sairé. Cantando o Macacauá, resgatando a música. Dona Luzia com dona Teté, como bem entendidas da arte da música e da leitura, criaram a letra do “Marambiré” (áudio acima).

LEMBRA SEU DENGO

De 1943 a 1973, o Sairé foi proibido pela Igreja, mas mesmo assim a comunidade preservava o ritual. Na casa de seu Osmar (atual juiz), da família do seu Joaquim Vieira, não se dormia antes de rezar a ladainha toda. Mesmo proibido pela igreja durante trinta anos, o Sairé era comemorado nas comunidades.

Seu Dengo e Jackson lembraram também de equivocada apresentação da festa popular em evento em Brasília, essa semana, sem conversa prévia, participação oficial e respeito com os responsáveis pelo ritual sagrado. Na tradição, o festeiro, os juízes e a saraípora teriam mais propriedade e responsabilidade para explicarem o que representa o Sairé para a comunidade nativa. Lembram também de noite em que o secretário de cultura, Luís Alberto Pixica, usou espaço de ensaio do sagrado na casa da dona Benvinda para falar sobre indígenas de forma negativa, sem dar-se conta que o Sairé é uma festa que nasce de ritual dos povos tradicionais da Amazônia. Isso começou a criar o desconforto entre participantes do rito religioso, já que muitos celebram o Sairé como festa de origem indígena.

A fé durante o ano todo

Os rituais da Santíssima Trindade

A festa do Divino é parte de um conjunto anual de ações que, em Alter do Chão, culminam no Sairé, em setembro. Em outras palavras, é um dos primeiros encontros tradicionais do ano do calendário popular religioso, um momento em que se organiza a vida comunitária e associativa do povo nativo da vila.

Festa do Divino em Laranjal, na família do Osmar, em 2017

A festa da Santíssima Trindade, ou do Santíssimo ou do Divino acontecem em geral em maio. Este ano, a festa foi na casa do seu Luciano, no Caranazal. Em 2018, foi também no Caranazal, coordenada pelo seu Raimundo. Em 2017, foi no Laranjal na casa do Osmar, que é o juiz do Sairé em 2019, é um dos oito filhos de dona Dalva, a saraipora que carrega o símbolo máximo da festa desde a morte de dona Maria Justa (quem conduziu o símbolo por cerca de 30 anos, em exemplo de fé). Estes personagens junto com seu Dengo, o festeiro do Sairé 2019 e cacique Borari da aldeia Caranã, são responsáveis pelos ritos sagrados. Filhas e filhos de lideranças como Dona Eugênia, dona Nega, dona Luzia Lobato, dona Neca…

Procissão dançada para o Divino Espírito Santo, com marambirés, curimbós e folias.

A celebração tem origem na Coroa, com registros do convento franciscano de Alenquer no século XIV em Portugal. Aqui no Brasil, é o exemplo perfeito da harmonização da cultura nativa com o cristianismo.

As personagens do Sairé

SARAIPORA

Todos têm muita fé no símbolo do Sairé. A saraipora é representativa da comunidade, reconhecida por ser uma pessoa de fé. Ela é a responsável por carregar o arco durante todos os rituais.

A lendária dona Maria Justa, que além de Saraipora, era foliã, artesã e doceira

A dona Maria Justa foi por mais de 30 anos Saraipora, cuidando do Sairé até o fim da vida. Um envolvimento que começou em uma promessa no dia em que dona Maria Justa quase morreu. Conta a história que ela estava no naufrágio de Sobral Santos, quando mais de 300 pessoas afogaram em Óbidos. Mesmo sem saber nadar, ela pediu ao São Sairé para protegê-la e salvá-la.

Dona Dalva (prima do seu Dengo), filha da Cecília e neta da Xivica, saraipora há 3 anos.

A JUÍZA E O JUIZ

O casal de juízes este ano traz seu Osmar e dona Iracilda, com todo o respaldo da comunidade. São eles os responsáveis pela festa sagrada.

Essa é uma celebração comunitária e as pessoas que tem representação não são atores, são pessoas reais.

EXPLICA DENGO

Seu Osmar organizando as orações do Divino Espírito Santo, em festa na comunidade do Laranjal, em 2017

Os mordomos trabalham com o juiz e juíza, são uma equipe de apoio que ajudam a pegar os mastros, preparar as comidas, organizar e produzir a festa. Os foliões tem a responsabilidade de rezar e cantar as folias. O festeiro convidado este ano para ser responsável pelo rito religioso é seu Dengo, cacique do Caranã.

Início: primeiro café da manhã do Sairé

Café da manhã tradicional na casa da dona Maria Benvinda, uma das guardiãs do Sairé, mulher do seu Silvito Malaquias Ribeiro, um dos fundadores do Espantacão.

A busca dos mastros no Lago Verde

“Mar Abaixo” cantada por seu Dengo e Jackson

Na busca dos mastros, todos os catraieiros e foliões do Sairé se reúnem no sábado que antecede o evento para buscar dois troncos altos de árvores escolhidas por um dos juizes no entorno do lago Verde. Com o clima de muita alegria, é servido o tarubá logo cedo para quem quiser. O Espantacão e a folia do Sairé comandam a festa com músicas tradicionais.

Desde sábado até quinta-feira o Lago Verde fica abençoado, marcando o tempo do Sairé, consagrando o espaço todo, uma tradição que se instala em Alter. Se a pessoa prestar atenção, nesse período ela vai ver muita coisa.

EXPLICA JACKSON REGO MATOS

O cortejo que leva os mastros da praia do Cajueiro até a praça do Sairé

LEVADA DOS MASTROS O capitão Camargo sobe desde a praia do Cajueiro em direção à praça do Sairé, na quinta-feira, em cortejo com a folia do Sairé e o Espantacão. A saraipora dona Dalva carrega o símbolo sagrado que representa a ligação de deus na Terra, na pureza da cabocla Borari.

A procissão do Beija-Fita antes de levantar os mastros

 

“Beija-Fita” cantada por seu Dengo e Jackson

O símbolo do Sairé é colocado para todos lembrarem da ligação de Deus com os homens.

Esse é o momento de contato direto com o divino, que faz seu pedido e agradecimento. Ali se ritualiza a promessa divina de Deus, aconteça o que acontecer, ele nunca vai se separar dos homens.

CONTA JACKSON

A montagem e levantação dos mastros na nova praça do Sairé

O ritual sagrado todas as noites das 7h às 9h durante o Sairé

Seu Dengo e Jackson contam que o ritual é voltado para esse encontro com o Divino.

"Todas as letras que a gente canta ali no final a gente canta é para esse encontro. Esse lado do sagrado é muito forte. O que é interessante disso é que o Sairé preservou algo que nem na Europa tem mais: a fé." Defende Jackson

 


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