A quem a vitória importa, quando os dois botos encantados estão empatados com 9 títulos cada um? Para Hermes Caldeira, que fez o papel do boto Tucuxi, o empate esse ano fez tudo mais saudável. Pelo visto, nem todos pensam assim. O Boto Cor de Rosa pediu uma nova contagem de votos e aguarda avaliação da coordenação do evento.
Reportagem de Hellen Joplin e Patrícia Kalil | Fotos de Claudio Chena
Ao longo de todo o ano, as duas associações se preparam separadamente, decidindo letra e música, ensaiando coreografias, criando fantasias e alegorias, além de escolher os moradores que farão as personagens de destaque: o apresentador, o cantador, a rainha do Sairé, a cabocla Borari, o curandeiro, a rainha do artesanato, o boto homem – encantador, o boto animal, a rainha do Lago Verde. Tudo isso vale nota. Os botos também são avaliados pelo carimbó, organização do conjunto folclórico, ritual e torcida.
Maria Eulália, rainha do Boto Cor de Rosa - Foto Hellen Joplin
"Pra mim foi maravilhoso defender o item rainha do Çairé, principalmente por ter a responsabilidade de simbolizar o que a festa representa, o religioso e o profano” – Maria Eulália, rainha do Boto Cor de Rosa
A entrada do boto Tucuxi começou na sequência com a fala de Alessandra Korap Munduruku sobre os perigos que os projetos de portos e hidrelétricas no Tapajós representam para todos os povos da região. Mesmo que as torcidas rivais evitem aplaudir uma à outra, quando Alessandra terminou seu discurso, as duas arquibancadas aplaudiram juntas e gritaram Fora Temer.
“A gente está mergulhado em sangue de índio. Nesta festa, estamos aqui para defender o nosso rio Tapajós, o nosso território e todos os rios da Amazônia. Os portos de soja são para os estrangeiros, as hidrelétricas são para os estrangeiros, a mineração é para os estrangeiros. Nada é bom para nós, indígenas, ribeirinhos e pescadores".
Alessandra continuou o discurso falando da importância de consultar os povos da floresta, como definido na convenção internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas/ ONU, antes de fazer qualquer ação que resulte em impacto na Amazônia. Terminou sua fala expulsando todos que destróem nossa floresta.
"Não ao agronegócio! Fora Temer! Fora hidrelétricas no Tapajós! Viva o povo Munduruku, viva o povo indígena do Brasil! Viva o povo do Brasil! SAWE! SAWE! SAWE!”
Shows com a fina flor do Pará
Esse ano, os shows foram regionais, valorizando o que há de melhor na música paraense. Assim, mestre Solano, Pinduca e a rainha do carimbo chamegado dona Onete subiram no palco para garantir o balanço e a alegria.
“Pinduca Gonçalves e Patricia Bastos que tocaram por aqui acabam de ser indicados ao Grammy Latino. Dona Onete é uma estrela nacional. Silvan Galvão é realizador de um bloco de carimbó que encantou o Rio da Janeiro no último carnaval. Mestre Solano O Rei da Guitarrada é respeitado pelos maiores músicos do Brasil. A Lucinnha Bastos fez o melhor da festa e o David Assayag Official mostrou que é realmente a voz da Amazônia. Fora as bandas locais de Santarém e Alter do Chão que fizeram desse Çairé uma festa regional e linda"
– conta Rodrigo Viellas produtor cultural
O ritual religioso
Tudo começa um sábado antes da semana do Çairé com a retirada de dois troncos de árvores da floresta do outro lado do lago para serem usadas como mastros. Uma vez na vila, os mastros são enfeitados com alimentos e erguidos até o final do evento, representando a fartura da região.
Dona Celiney Lobato, professora de arte e fundamental da escola Borari, foi mordoma este ano e contou sobre a retirada dos mastros: “Às 5h, uma queima de fogos anunciava o nascer do dia. Às 7h, fomos todos tomar café da manhã na casa da dona Maria Benvinda. Nos reunimos lá a saraipora, a juíza, mordomos e mordomas (responsáveis pela ornamentação do barracão) e os foliões. Em seguida, caminhamos juntos em cortejo até a orla onde os barqueiros esperavam com suas catraias enfeitadas para a romaria fluvial. que se dirige ao mucaem (local onde se retira os mastros) para a busca dos mastros".
Antes de atravessar o lago com os mastros, acontece um plantio de mudas nativas como andiroba, pequiá e cumaru, como forma de compensar a retirada de duas árvores. Depois disso, a procissão retorna para a vila com os dois mastros, um dos homens e um das mulheres. Os mastros são levados até a praia do Cajueiro onde são enfeitados para a festa. Na quinta feira, uma nova procissão leva os mastros já preparados até a praça do Çairé, marcando o início das festas profanas.
Durante a festa profana, os comunitários envolvidos com a parte religiosa do festival não param. Eles rezam em latim durante as noites de evento algumas vezes em volta dos mastros. Veja vídeo da prefeitura sobre as ladainhas:
https://www.youtube.com/watch?v=fpbE_qrKlQo
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